A voz pragmática (e utilitária) da economia

“Onde há grande propriedade, há grande desigualdade. Para um muito rico, há no mínimo quinhentos pobres, e riqueza de poucos presume a indigência de muitos.”

Adam Smith.

Li com atenção as proposições da CARTA ABERTA À SOCIEDADE REFERENTE A MEDIDAS DE COMBATE À PANDEMIA, assinada por economistas e banqueiros, e pude tirar dela as conclusões que considero importantes.

É claro que o combate à pandemia, objeto do referido documento, é urgente em razão do seu significado humano e da incrivelmente negativa condução dela pelo governo atual, que representa o maior desastre sanitário e administrativo do Brasil nas últimas décadas. Nisto temos opiniões convergentes.

Os donos do PIB já sentiram que o seu representante político no governo é incompetente administrativamente e é ideologicamente contraditório; não pode (e não quer) ser neoliberal num momento de crise econômica e sanitária como este; e não tem competência administrativa para ser nacionalista estatizante como é do seu desejo.

A equipe  de Ministros moldados ao seu feitio e por ele montada (os mais qualificados, ou foram demitidos ou se desencantaram com os rumos do governo e saíram) bem demonstram os critérios pelos quais foram escolhidos.

O governo do capitão Boçalnaro, o ignaro, consegue ser muito pior do que os governos militares (que ele tanto elogia) que entregaram o Brasil com dívida externa multiplicada, inflação altíssima, concentração de renda elitista, estatais deficitárias, estagnação econômica (os anos 80 são considerados a década perdida), sem falar no desrespeito aos direitos civis conspurcados com prisões arbitrárias, assassinatos de presos políticos indefesos, demissões de funcionários públicos pelo simples fato de serem tidos como comunistas, nepotismo causador de privilégios indevidos, etc., etc., etc.

Em relação aos militares de 1964/1985, ele tem o demérito de acrescentar aos números pífios da economia, a condição de ecocida da questão ambiental, e de genocida no trato da mais grave crise humanitária do pós-guerra.

Por mais difícil que pudesse parecer aos embandeirados verde-amarelos que se reuniam em torno do pato da Fiesp, este governo que aí está vem demonstrando quão equivocada essa massa de apoiadores estava, e está a constatar que o seu mito é apenas campeoníssimo em incompetência e insensibilidade para com o povo brasileiro.

Mas o capital é pragmático, e quando a labareda de fogo começa a queimar os seus interesses, eles são os primeiros a acionar os extintores de emergência; defenestrar Boçalnaro, o ignaro, já está na ordem do dia das elites, seja por interdição mental, pelo impeachment, ou por um processo eleitoral que reintroduza alguém palatável e confiável como Lula, que na falta de alguém de suas hostes mais simbolicamente definido, um pretenso socialista vermelho adestrado lhe serve.

A carta das elites econômicas e seus executivos ora analisada é a certidão de abandono do Capitão Bolsonaro, o ignaro, por aqueles que o apoiaram no período pós-Dilma Rousseff, diante do descalabro administrativo ora constatado.

A coisa chegou a tal ponto acintoso que eles querem pelo menos cuidar da questão sanitária primordialmente, como forma de salvar uma pretendida recuperação econômica, quiçá com outro personagem.

A preocupação não se dá por um repentino sentimento humanista, mas porque são as pessoas que movimentam a economia com salários e consumo, e não as máquinas, que não produzem valor, mas apenas reduzem custos e concentram lucros para alguns vitoriosos na fratricida corrida concorrencial de mercado (ainda que as máquinas, no estágio atual, diminuam a massa global de valor produzido, razão da atual debacle capitalista mundial).

Defendem a vacinação em massa por constatarem a incompatibilidade entre a propagação infecciosa e mortes daí derivadas e funcionalidade da vida mercantil que lhes dá sustentação segregacionista.

Se só morressem os desempregados talvez eles não sentissem tanto, mas há muita gente inserida no processo produtivo de valor morrendo e gente graúda das suas hostes também.

O vírus da covid19 não é seletivo como a vida social democrático-burguesa.  

Como o governo que aí está, outrora por eles apoiado e incensado, não compreendeu que o isolamento social é medida de combate à paralisia econômica menos prejudicial do que a chamada fuga para a frente das relações de produção de mercadorias e comercialização como se não houvesse a pandemia, eles tomaram a inciativa de chamar o feito à ordem, ou seja, deram uma enquadrada no Presidente.

Sentindo a pressão o governo recua, com cara de desespero mente descaradamente em pronunciamento televisivo à nação, muda o rumo da conversa, e convoca os representantes dos poderes institucionais (legislativo e judiciário) para um acordão de sustentabilidade governamental.

A carta faz inicialmente uma exposição dos números da tragédia brasileira na área econômica apontando a queda do PIB em 4,1% em 2020, e já aumentando no primeiro trimestre de 2021; 14% de desempregados; 5,5% milhões de pessoas como redução da força de trabalho, para concluir que tudo se deve à pandemia.

Discordamos desta análise que coloca unicamente nos ombros da pandemia toda a debacle da economia. Já em 2019, quando ainda não havia pandemia, houve um crescimento pífio do PIB brasileiro, fixado em 1,1%; e os organismos internacionais (FMI, OCDE, ONU, entre outros) apontavam para uma queda no crescimento da economia mundial para 2020.

A pandemia agravou o quadro de queda das atividades econômicas, e isto é verdadeiro. Entretanto, mais do que isto demonstrou a incompatibilidade entre vida sustentável e economia mercantil utilitária (a produção mercantil usa a necessidade de consumo para existir, e não para satisfazê-la como princípio humanista).

A explicitação de tal oportunismo talvez tenha sido o único aspecto positivo da pandemia diante de um custo tão alto de vidas humanas. Os mortos, nos seus silêncios sepulcrais, conspiram contra o genocídio capitalista pandêmico.

Mas o que mais me impressiona na carta é que ao final ela se restringe unicamente a quatro proposições de combate à pandemia como forma de revitalização da economia, como se a retomada do crescimento econômico, que já vinha cambaleante, tivesse o condão de restaurar de modo saudável a vida social.

Esquecem-se de condenar a execrável concentração da riqueza brasileira e os privilégios de sua elite insensível, inclusive do segmento político, que os signatários ou representam como executivos ou dela fazem parte (as exceções somente confirmam a regra).

Nenhuma proposição se refere a mexer na comprovada concentração de riqueza das elites brasileiras que afronta pela desigualdade social visualmente comprovada de dois brasis justapostos geograficamente e socialmente.

Nenhuma medida de ampliação de direitos relativos à posse de bens servíveis à moradia e exploração da terra agrícola.

Nenhuma proposição de apropriação das nossa riquezas alimentares no sentido de saciar a fome que se alastra entre os desempregados que a carta afirma estar aumentando (mas querem a distribuição de dinheiro emergencial que movimenta a economia, ainda que tenha um custo de endividamento cuja conta será paga mais tarde pelos brasileiros pobres).

Nenhuma proposição de subsídio ou mesmo congelamento de cobrança de contas de abastecimento de água e fornecimento de energia elétrica (pelo contrário, há uma subida de preços do gás de cozinha e combustíveis obedecendo as regras de mercado).

No atual quadro econômico-social há que se tomar algumas medidas dentro da lógica capitalista, de sobrevivência da população, seja com subsídios ou taxando-se circunstancialmente os que detêm a enorme concentração de riqueza abstrata no Brasil (bem como as empresas estrangeiras que aqui atuam), e outras estruturantes, avessas à dita cuja, relativas à apropriação das nossas riquezas materiais abundantes, que não apenas seriam emergencialmente satisfatórias.

Tais medidas seriam educativas para a população compreender que toda riqueza material socialmente produzida deveria sê-lo em seu benefício e não em benefício do capital concentrador de riqueza abstrata segregacionista.

Retaliações do capitalismo nacional (e sua elite política submissa) sempre ávido de lucros e manutenção dos privilégios haveriam; do capitalismo internacional mais ainda, mas pergunto:

– já não vivemos sob tais retaliações via mercado?

– já não pagamos juros extorsivos de nossa dívida pública, enquanto o os países do G7 não pagam juros nenhum?

já não vendemos alimentos a preços de banana e compramos mercadorias tecnológicas a preços que excedem em muito os preços destes alimentos (para se ter uma ideia da disparidade de preço de mercadorias básicas em relação às tecnológicas, as exportações anuais cearenses da siderúrgica do Pecém já somam mais de 50% de todas as exportações cearenses, estas últimas advindas majoritariamente do setor primário da economia e tradicionalmente exportadas ao longo de séculos)?

– já não vivemos sob a égide da produção agrícola voltada para o mercado que inviabiliza as fazendas do nordeste brasileiro, ora abandonadas, mas mesmo assim ainda conservadas em nome do grande latifúndio?

Altivez não se pede; se conquista!

A maior pandemia que temos é termos que viver sob a égide da forma-sujeito mercantil, responsável pelo impasse atual da humanidade, e que está a clamar por um novo modo de produção social e de uma ordem jurídico-social de organização horizontal que sejam consentâneas com as exigências do novo tempo.

Dalton Rosado.

Dalton Rosado

Dalton Rosado é advogado e escritor. Participou da criação do Partido dos Trabalhadores em Fortaleza (1981), foi co-fundador do Centro de Defesa e Promoção dos Direitos Humanos – CDPDH – da Arquidiocese de Fortaleza, que tinha como Arcebispo o Cardeal Aloísio Lorscheider, em 1980;

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Dalton Rosado

Dalton Rosado é advogado e escritor. Participou da criação do Partido dos Trabalhadores em Fortaleza (1981), foi co-fundador do Centro de Defesa e Promoção dos Direitos Humanos – CDPDH – da Arquidiocese de Fortaleza, que tinha como Arcebispo o Cardeal Aloísio Lorscheider, em 1980;