A TV de botas brancas

Diane era menina negra, cabelo duro e encaracolado, babava pelo canto da boca e não tinha televisão para assistir o Xou da Xuxa. Eu tinha TV em casa, o cabelo batia na bunda e uma prima rica que me dava botas usadas, sempre que o modelo novo chegava.

Um amigo da época do “João Teles” tem uma “paixão” pelas muitas histórias da TV, principalmente relacionadas aos anos 90. E ele dia desses me disse: “Heli, eu sempre lembro de você com a bota da Xuxa, pulando as poças de lama e indo para escola”. Tudo bem, mas o que ele não sabe, é que até seminário eu fiz sobre as botas da Xuxa, a televisão e os caminhos da escola.

Eu não preciso citar teorias da comunicação ou autores da escola de Frankfurt para dizer que a televisão, igualmente como outros sistemas de mídia, exerce uma grande influência no cotidiano das pessoas, e exerce mais forte ainda, na vida e imaginário de jovens e crianças.

Numa época onde controle remoto não existia, internet e muito menos o celular, o meu tempo, assim como das irmãs, era dividido entre a escola, lavar a louça alguns dias da semana, catar feijão na roça de vez em quando e assistir televisão. Então, posso dizer que a TV até era um instrumento de socialização, porém, pouco preocupado com a formação das crianças ou muito preocupado com um tipo único de formação. O consumo para nós, ou o viés mercadológico do nosso programa favorito, passava despercebido; não era um bicho feroz, um mandar/obedecer; era multicor e brilhante. Era uma lei “natural”. Mas, por não termos uma permanência desmedida e violenta em frente à tela, os “problemas” causados por ela foram mais fáceis de resolver. Lá em casa, e nas poucas casas que tinham TV, só funcionavam dois canais; um eu não lembro, e sei que o Castelo Rá-Tim-Bum ainda não existia; o outro, assistíamos religiosamente, cinco vezes por semana, quase 5 horas de programa por dia – o Xou da Xuxa.

Diane se escorava na janela e escorregava devagar até o chão da sala para assistir comigo e meus irmãos, as cinco sedentárias horas de diversão.

A falta de pluralidade as vezes me confundia – Xuxa, She-ra, He-Man era tudo muito parecido, além de quase uma dúzia de meninas um tanto iguais à apresentadora. O que eu queria delas? As botas brancas com franjas longas, os pompons coloridos, as boinas e bonecas da apresentadora, os discos, os brinquedos, o chiado da fala carioca (caso vendesse nas bodegas e papai pudesse comprar), os balões arco íris e as faixas vermelhas extravagantes na cintura… Eu gostava da minha “cor indigena” e os meninos na escola reforçaram aquele gostar – no intervalo, brincando de trancelim, alguns me diziam; “ei, indiazinha, quando eu crescer vou me casar com você”. Eu ficava besta e escutava isso quase todo dia ao chegar na escola com o meu cabelo que batia na cintura, com os pingos d’água e cheiro de shampoo babosa molhando a farda de saia azul plissada na frente, blusa branca e tênis colegial.

Ops, tênis não, agora eu tinha “As Botas da Xuxa”, usadas, mas eram de verdade e eram da Xuxa.

Graças a uma prima rica, e como muitas de nós sabemos, para cada 10 primos pobres, tem sempre um, único, filho de tia rica, e comparado com “noiz”, era primo rico, sim, no caso, uma prima. Ela fazia o favor de enjoar do modelo velho, tão logo a bota nova aparecesse nos comerciais. Pois é, adivinha quem eram as sortudas, as the littles miss pretinhas que ganhavam aquelas relíquias? Isso mesmo, eu e minha irmã mais velha. E assim fazíamos parte de uma mudança cultural dos anos 90, que se iniciou fortemente no final dos anos 80, com pompons rosas vibrantes, botas com franjas brancas e tindolelês. Custava uma fortuna e meus pais não podiam comprar. A boneca então, só se fosse espiga de milho verde trazida lá da roça por papai.

Foi tão forte a turbulência no imaginário infantil, quanto no mundo pós-industrial. Construiu ilusões, dissolveu convicções, e desiludiu, de vez em quando, o coraçãozinho da pequena Diane. Para ela, nem TV, nem coques de paquitas e nem água de torneira em casa.

Além da televisão, lá em casa tinha “água encanada” com hora marcada para chegar, e só uma vez por dia. Era um luxo água de torneira.

A água chegava antes do Xou da Xuxa começar.

A mãe de Diane abastecia a casa com baldes de água que buscava na nossa torneira.

Todo dia, a menina aparecia na cancela em frente à varanda – e mais ansiosa pela Xuxa do que pela água – ela gritava: ei Dona Toinha, mãe ta perguntando se a água já chegou!

Não bastasse eu pular na frente, como uma pequena diaba, para responder antes de minha mãe, eu ainda mexia a cabeça para os lados, fazendo os “cocós” balançarem  harmônicos e o beicinho de Diane murchar.

Diane assistia admirada – as paquitas, os desenhos, e a COR da TV. Ela não se reconhecia, não era representada, mas sonhava, desejava. Pouco falava, e perplexa ficava com meus cabelos enormes com dois coques segurados por elásticos coloridos imitando a rainha dos baixinhos. As atitudes, os gestos, a dança. Mesmo que nossa realidade nada tivesse em comum com a da Globo.

O choro da menina, cada vez que eu passava com as botas brancas de franjas longas e os pompons em cada lado da cabeça, era um calvário para ela. É claro, na minha criancice, não fazia por maldade. Eu não entendia, virava as costas, subia a rampa para pegar à estrada a caminho da Escola prof. João Teles de Carvalho, enquanto ouvia o choro desgostoso e inconsolável de Diane.

O tempo passou e eu imitei Babalu, personagem de uma ex paquita que fez enorme sucesso num folhetim das 19h: cortei os cabelos, pintei as unhas de vermelho, comprei as blusinhas ciganas  e quase mudo o nome do namoradinho, queria chamá-lo de “Raí”. Isto é, quase não sofri influência da TV na adolescência.

Hoje, passando da ilusão ao desencanto, eu vejo aqueles gestos esvaziados de sentido. Diane morreu aos 24 anos. E, por exemplo, se eu pudesse voltar no tempo, queria dizer para ela: éramos todas lindas, com ou sem TV, as paquitas loiras de olhos azuis,  a descendente indígena com botas da moda, pulando as poças de lama no caminho da escola e a negra menina de cabelos duros e encaracolados. Até a tristeza e o soluço dos olhos dela eram belos. A palavra empoderamento, talvez nem existisse, mas eu queria dizer também para Diane que nós éramos inocentes e vítimas de um sistema cruel de comparação, “desempoderamento”, enquadramento, exclusão e competição feminina desde os nossos primeiros anos de vida.

 

Imagens: Wikpedia

Heliana Querino

Heliana Querino Jornalista