A República LuLiraLá

“Os líderes independentes, que não fazem parte da base de Lula, reconheceram a necessidade de dar mais uma oportunidade ao governo”.  

Artur Lira, Presidente da Câmara dos Deputados, após negociar com o Presidente Lula a liberação de 1,9 bilhões em emendas parlamentares.

Ufa, passou! A reforma ministerial do Lula foi aprovada ao preço de RS 1,9 bilhões em emendas parlamentares, e assim, haja licitação viciada para as obras que virão de tais emendas. É para comemorar ou par(a)lamentar?

A democracia burguesa é isso, e não podia ser diferente, posto que é uma forma política opressora que dá sustentação a uma relação social igualmente opressora. É a corrupção intrínseca de um sistema cuja base primária é a corrupção (o roubo do tempo de trabalho/valor pelo capital).
Lula acha isso coisa normal e argumenta que “isso é a democracia, e temos que conversar com quem não gosta da gente.” “Conversar” ou pagar? Denunciar ou “conciliar”? “Conservar” o status quo ou se rebelar? “Reformar” algo para que tudo continue na mesma, ou revolucionar?  
Como diz Celso Lungaretti, será que vamos ter que esperar a revolução para depois do fim do mundo?

Lula, como socialdemocrata burguês socialista que é, adora jogar esse jogo; Bolsonaro também jogou esse mesmo jogo, só que com o nome de orçamento secreto.
Mas há um perdedor nesse jogo: o trabalhador abstrato que é explorado na extração de mais-valia e na cobrança de impostos que serve para remunerar regiamente a todos os poderes da Res Publicae (parlamento, judiciário e executivo) e a eterna corrupção com o dinheiro dito público que tudo financia em matéria de sustentação da política.  

Não há boa política, mas simplesmente, modo opressor institucional, com cosméticas variações doutrinárias, algumas claramente anticivilizatórias, outras mascarando a opressão nela contida.  

Passo a citar uma conversa ilustrativa da inconsciência social sobre a própria opressão.  

Ao ouvir uma explanação minha mais elaborada sobre o que representa a república para um interlocutor lulista mais erudito, daqueles que defendem a esquerda empresarial estatizante; que considera que as estatais são suas; que o patrão estado devolve a apropriação indébita de extração de mais-valia e os pesados impostos que são cobrados; e que usa o argumento do fantasma da volta da direita fascista para a aceitação dos políticos reformistas, ouvi de uma lulista mais simples, empregada doméstica negra, que perguntou-me:
“por que você fala mal do Lula, que criou o bolsa família; o programa “minha casa minha vida”; que defende os direitos dos trabalhadores e a luta dos sindicatos; defende os negros e mulheres, como eu, etc.?”
Respondi procurando ser conciso num tema complexo:  
“contesto o Lula porque sou contra a existência da exploração ao trabalhador, que somente pode ser erradicada com a superação do próprio trabalhador e do trabalho! Diferentemente de Lula, defendo outro modo de produção e outra organização social, sem trabalhadores!”

Ao que a minha interlocutora ainda mais confusa, me retorquiu:  
“como assim, sem trabalhadores! Você quer que o alimento venha até a sua boca sem fazer esforço? Que a gente fique em casa dormindo sem fazer nada? Cê tá ficando doido?”

Pacientemente, tentei lhe explicar que trabalho não é sinônimo de atividade humana em interação com a natureza para prover o nosso sustento e a nossa vida, mas uma categoria capitalista, e percebi que ela não sabia o que era nem interação, e nem categoria capitalista, e me apressei em explicar de modo mais didático:  
“Maria, interação com a natureza é o esforço que todos nós fazemos para produzir algo, seja um objeto ou seja um serviço, como o que você faz em troca do seu salário.”

A indagação continuou:  
“mas Dalton, como podemos viver sem o salário, se é com ele que eu compro os alimentos que levo para o meu filho em minha casa na favela e pago o aluguel do meu barraco?”

Expliquei: “Maria, você ganha pouco, e mal dá para alimentar a sua família e pagar o aluguel; mora numa favela onde as ruas de acesso são esburacadas; onde o carro de lixo não entra e se amontoam os dejetos num local próximo; quando você adoece não tem plano de saúde e fica na fila do SUS; a escola dos seus filhos servem mais como forma de alimento do corpo do que como ensinamento cultural; e outras mazelas que você conhece muito bem. Eu proponho que a gente acabe com isso!!!” Ela disse: “Mas Lula não tem nada com isso! Ele luta contra isso”.

Continuei meu esforço primário de conscientização:
“Maria, você já ouviu falar que as aparências enganam? Lula é um operário, que defende os direitos operários, mas ele não quer que o operário se liberte da escravização que é ser operário. Quer apenas que as coisas melhorem, e as coisas não vão melhorar enquanto nós não abarmos com a exploração do próprio operário, que só pode acontecer quando não mais existirem operários assalariados e acabarmos com o dinheiro, que é o instrumento da exploração.

Maria: “Agora é que você complicou a minha cabeça. Como é que vamos fazer alguma coisa sem o dinheiro? Eu só faço a faxina da casa onde trabalho com o detergente que é comprado com dinheiro; o Zé, aquele mulherengo, que era meu marido e paga a pensão do meus filho (com atraso), só ganha dinheiro da cerâmica quando tem trabalho e a empresa vende tijolos comprados com dinheiro. Como é que você quer acabar com o dinheiro? Só se faz alguma coisa com dinheiro!!!”

Expliquei: “Maria, não existe um só grama de dinheiro nos detergentes e nos tijolos. O dinheiro se mete na produção desses objetos, que se transformam em mercadorias, como um intruso para escravizar a maioria e reproduzir o próprio dinheiro. Quando nós compreendermos isso, vamos nos libertar da escravidão e vamos produzir tudo que você não tem. Principalmente, uma casa.”  

Nesse momento ela sorriu esperançosa e me disse em tom de brincadeira e de quem já queria encerrar aquela conversa complicada:  
“Pois, Dalton, dê um jeitinho disso chegar logo, que lá em casa quando chove eu passo a noite acordada com medo do alagamento da rua e de dentro de casa. Rsrsrsrsrsrsrs.”
O texto ora reproduzido de uma conversa real e simplória até, mas necessária com uma pessoa de pouca instrução e com uma trabalhadora sofrida, representa a dicotomia verdadeira, sem sofisma, entre a ilusão reformista vendida pelos partidos da esquerda institucional que chegam ao governo burguês até serem deles expelidos por desgaste inevitável, e a necessária superação do modo de relação social capitalista ora em franca decomposição.  
Seria o Lula o sujeito de tal superação, com o comportamento “civilizado” e democrático burguês que pratica como pretensa antítese do fascismo genocida insensível ao drama humano, que se aproveita ciclicamente e eleitoralmente (ou como autocratas) das deficiências próprias a tudo o que incorpora o sistema capitalista por eles defendidos, como se fosse a esquerda institucional gerenciando mal a administração da falência capitalista a grande culpada???  
Considero que estamos atingindo um momento mundial do ocaso de uma relação social baseada num critério de mediação social de troca de mercadorias (valor e dinheiro) que se desenvolveu durante milênios de escravização, com os aperfeiçoamentos que a consciência moral humana pôde promover e desenvolver, mas que entrou em colapso, inclusive agora com danos ecológicos que podem se tornar irreversíveis à nossa existência.

Tal colapso ocorre justamente por conta da evolução tecnológica e incompatibilidade entre a forma de produção social (mensuração do tempo de trabalho a partir da produção de mercadorias por outra mercadoria denominada dinheiro/valor) e o seu conteúdo conceitual (caráter lógico-matemático insensível e oportunista da reprodução do próprio dinheiro/valor tendo por base a necessidade de consumo humana,) e já não serve como modo de satisfação social e manutenção minimamente aceitável, e evidencia a opressão sócio-política do seu modelo.  

Lula e Lira (o LuLiraLá) são faces de uma mesma moeda, e é por isso que sabem negociá-la.  

Nós, os emancipacionistas, rejeitamos tais moedas de trocas, e lutamos por outro tipo de relação social, sem o “me engana que eu gosto”.  

Dalton Rosado

Dalton Rosado é advogado e escritor. Participou da criação do Partido dos Trabalhadores em Fortaleza (1981), foi co-fundador do Centro de Defesa e Promoção dos Direitos Humanos – CDPDH – da Arquidiocese de Fortaleza, que tinha como Arcebispo o Cardeal Aloísio Lorscheider, em 1980;