Ontem, no meio da tarde, após uns compromissos meus na área de exames médicos, dou com Companheiro Acácio em uma das mesas do café na livraria da cidade. De longe, percebi-o macambúzio e enfiado em divagações. A amizade decifra-nos de longe, bem sei.
Fingi interesse em alguns livros de sociologia, a fim de me aproximar da sua mesa, quem sabe seria por ele notado. Nada, os olhos de Acácio visavam o longe, o próximo lhe era completamente invisível e indiferente.
Então, distanciei-me, respeitando o momento de introspeção do Companheiro. No entanto, confesso, não resisti mais de que cinco minutos. Sobraçado com algumas obras recém-lançadas, eu caminhei para uma das mesas da cafeteria, em busca de um lugar para sorver um donzelo; bem como folhear os exemplares escolhidos. E, nesse rito, ao final adquirir, na minha visão, os melhores tomos.
Quando eu, assumo que de forma um pouco escandalosa, chamei pela garçonete, Acácio elevou-me o olhar.
— Acácio!?…
Senti-o deveras sorumbático, quase nas raias do campo escuro da depressão.
Sem aguardar o seu consentimento, mudei-me para a sua mesa.
De imediato, percebi que ele estava a folhear Reflexões sobre a vaidade dos homens, de Matias Aires.
— Nova edição?
— …
Como me apresentara reticências como resposta, concluí: o caso é grave; Acácio, quando se trata de livros, é sempre efusivo, beirando o campo do fanatismo. Julguei-o bem mau, afundado como dizem os psiquiatras.
Resolvi instigá-lo, lendo-lhe uma passagem do livro Uma lágrima furtiva, de Nélida Piñon:
Meu ofício
Escrever é o que sei fazer. Narrar me insere na corrente sanguínea do humano e me assegura que assim prossigo na contagem dos minutos da vida alheia. Pois nada deve ser esquecido, deixado ao relento. Há que pinçar a história dos sentimentos a partir da perplexidade sentida pelo homem que, na solidão da caverna, acendeu o primeiro fogo.
Ele nada respondeu; melhor, a nada reagia. Senti em suas mãos de vidro um quê de Melancolia que não sei como descrever. Sim, optei pela grafia de melancolia à moda simbolista, com “M” maiúsculo. Em certos momentos, e aquele em especial, Acácio se transpõe para um universo deveras simbolista. Um Cruz e Souza do semiárido, poderíamos alcunhá-lo.
Pedi à atendente que nos trouxesse o de sempre. O seu café expresso e a água mineral com gás ficaram sobre a mesinha, mas ele nem sequer se serviu. Enquanto o café esfriava, cuidei de analisar o Companheiro. Os olhos escuros traziam o sinete de dias mal dormidos, os lábios cerrados, os dentes em discreto rangido, as mãos pensas sobre o tampo da mesa, com um leve tremor, mais de desfastio do que de medo ou receio. Contudo, o olhar. Ah, o olhar de Acácio não lhe caía bem!; melhor, me assustava. Via-o em compasso de dor e tristeza, abraçado a uma angústia de que nunca o soubera vítima.
De repente, ele se levantou e pediu licença para ir ao banheiro. Ao caminhar, percebi-o claudicante. O joelho direito, suspeitei.
Ao retornar, ele não parou em nenhuma estante, não folheou um livro sequer, e, com isso, constatei, sem mais delongas: “Acácio não está bem”.
— Companheiro Acácio, algum problema? Posso lhe ajudar? Amigo é para…
Ele, discreto, elevou a mão direita, e aquilo foi o bastante para me levar às cordas do silêncio.
Minutos depois, um leve pigarro e um folhear lento no Matias Aires.
— A literatura, Clauder Arcanjo, resistiria sem a droga da vaidade? Escrever não seria, antes de tudo, um ato de exibicionismo pessoal? Se eu quero ser aprendiz e humilde, não seria o caso de parar de escrever? — propalou, em indagações sucessivas.
— …
— Meu amigo Arcanjo! O mundo se me apresenta cinza, a saúde me falta, e a paciência com os homens ditos de cultura, vaidosos como quê, me foge por entre os dedos. Não aguento mais… Não aguento… — Mal pronunciou tais sentenças, Acácio afundou num silêncio ainda mais opressor do que as suas questões.
— Companheiro, você, e não faz muitos anos, me apresentou uma passagem deste mesmo livro do Matias Aires em que, salvo engano, ele professava: “A vaidade por ser causa de alguns males não deixa de ser princípio de alguns bens.”
Acácio, então, abaixou a face, passando a mão pequena no lombo da nova edição de Reflexões sobre a vaidade dos homens, como em modos de carinho; e, antes de se levantar, segredou-me:
— Clauder Arcanjo, acho que ando um pouco cansado, e isto vem me tirando a tranquilidade e o poder do raciocínio adequado. Não sei se há razão para tamanha Melancolia minha. Preciso de uma semana sabática. “Que coisa é a vida para todos mais do que um enleio de vaidades e um giro sucessivo entre o gosto, a dor, a alegria, a tristeza, a aversão e o amor?”
Nisso, achega-se de nós um “promissor talento literário”, festejado por onze entre dez blogueiros culturais da Loura Desposada do Sol; e, sem meias palavras, mas com meias verdades, se dirige ao Companheiro Acácio, com uma presunção de vencedor do Nobel:
— Meu novo livro já nasce clássico, antes mesmo de ser publicado, sabia mestre Acácio? Foram as palavras do meu editor — asseverou, em tom altissonante.
Foi a gota d’água; Companheiro Acácio pede-nos licença e se levanta. Em seguida, alega o início de uma crise de enxaqueca e me deixa, sozinho, com a vaidade daquele novo Baudelaire cearense.
Raí Lopes
Companheiro Acácio, não se desespere com a ignorância dos tolos. Como bem disse teu amigo literário, exaltando Matias: “A vaidade por ser causa de alguns males não deixa de ser princípio de alguns bens.” Fico com essa “tese dogmática” dos hereges, mas que funciona bem para os parcos conhecimentos que temos sobre a cultura humana.