A quarentena fantasmagórica

Com a volta do Fantasma de Licânia e a pronta atuação do cabo Jacinto e do nosso Holmes licaniense, a província mergulhou numa paz de cemitério.

Sim, caro leitor, sei que a metáfora “paz de cemitério” pode soar descabida nesses tempos de pandemia, mas, confesso, nada melhor me ocorre quando tento narrar mais um capítulo desta saga que se espicha mais do que couro de bode novo. Outra comparação reles?!

Bom, então, seu mal resolvido, feche esta página e vá colocar seus olhos em outro escrito. Seguirei ao meu modo, do meu jeito e com minhas expressões. Se as desprezo, desprezo-me; ou, o que é pior, dou as costas às minhas origens. Quer que eu me explique? Sim, eu o farei.

Desprezo minha procedência porque no solo de Licânia ninguém narra uma tragédia à Shakespeare, ou tal qual um Dante. Lá tudo se resolve com o palavreado colhido no cotidiano, amassado no barro do dia a dia, entendido do Caneco Amassado à sede da prefeitura, passando pelos pinguços que bebericam no bar do Edir ou na sombra dos vetustos tamarineiros.

Você me pergunta se o vocábulo “vetusto” é comum no linguajar da minha gente?! Sim e não. Sim, porque nosso proto-filósofo João Américo sempre incute na cabeça do povo umas palavras de início esquisitas, mas, sonoras, caem nas graças das ruas. Com o tempo, passam a fazer parte do imaginário dialético das conversas dos becos e das calçadas da província. Muitos a propagam sem se dar conta de seu real significado, porém, sob o império do uso e abuso, elas se aproximam da significância do seu nascedouro. E putas, políticos, crentes, bêbados a exortam, quer no calor do idílio, quer nas pugnas eleitoreiras, quer nos chamados eclesiásticos ou, no mais das vezes, nos arroubos etílicos dos discursos dos demostênicos bebuns.

— Demostênicos bebuns?!

Homem, deixe de se meter no meu relato! Quer ou não quer saber do que aconteceu em seguida?

Então, amigo, se cale e não meta seu bedelho na minha narrativa! Ora bolas!
Muito bem. Onde eu estava mesmo. Deixe-me ler o que escrevi no final do capítulo anterior.

Humm… Acácio Holmes voltou! Agora me situei. E lá vou eu, montado no cavalo da prosa.

— Manco!

Manco ou não, seu enxerido, o pangaré é meu. E você vá para o quinto dos infernos, antes que eu perca o restinho da minha decência literária.

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Naquele ar de cemitério, Licânia transformara-se numa cidade fantasma. Nenhuma recomendação de isolamento social funcionara antes; no entanto, com o Fantasma de volta, todos meteram seus narizes dentro de casa. E a pandemia deu fortes sinais de recuo.

Sem mencionar que o Companheiro Acácio, na sua engenhosa atuação, banira os embusteiros negacionistas.

— A taxa de ocupação dos leitos caiu vertiginosamente! — comemorava a área médica.

Na madrugada, assinalaram alguns historiadores, um vulto corria as ruas. E, em seguida, Companheiro Acácio seguia-lhe os passos, detetivescamente montado no lombo da sua nova assistente, a jumentinha Sancha.

Em resumo, a quarentena fantasmagórica baniu a Covid da história de Licânia.

— Fantasmagórica, fantasmal ou fantasmática?

Lá vem você de novo, caro leitor! Eu não vou dar cabimento a esse seu arroubo de dicionarista.

Ou seria de filologista? Bom, deixemos para lá.

Minha missão neste capítulo já foi devidamente cumprida. Registro, e dou fé, que o Fantasma de Licânia (e a ajuda de Acácio Holmes, dos coices de Sancha e das bordoadas educativas do cacete de jucá do Cabo Jacinto Gamão) foi o melhor tratamento contra o coronavírus nas ribeiras licanienses.

Quando a vacina chegou, minhas caras e meus caros, deu-se uma verdadeira batalha para se estabelecer quem, onde, como e qual seria a prioridade na vacinação.

— A vacina vai trazer uma nova variante de Sobral!

— Não tenho bunda para vacina. Só para a seringa do Pistola — gritava uma das assanhadas cunhãs.

— Quem se vacinar vira calango — picharam nos muros da casa paroquial.

Mas isso já é assunto para um novo capítulo.

Clauder Arcanjo

Clauder Arcanjo é escritor, membro da Academia de Letras do Brasil. Autor das obras Licânia, Novenário de espinhos, Uma garça no asfalto, Cambono, O Fantasma de Licânia, entre outras.

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Clauder Arcanjo

Clauder Arcanjo é escritor, membro da Academia de Letras do Brasil. Autor das obras Licânia, Novenário de espinhos, Uma garça no asfalto, Cambono, O Fantasma de Licânia, entre outras.

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