O presidente Jair Bolsonaro, no dia 7 deste mês de maio, de inopino atravessou a Praça dos Três Poderes, a pé, arrastando uma porção de empresários e ministros, e foi até o Supremo Tribunal Federal. Ali, encontrou-se com o ministro-presidente. A “invasão” tinha o objetivo de pressionar o tribunal no sentido de amenizar as medidas restritivas ao ir e vir, editadas por Estados e Municípios por conta da pandemia da Covid-19, e julgadas em conformidade com o texto constitucional.
Uma semana depois, o vice-presidente da República, general Hamilton Mourão, em artigo publicado em “O Estado de São Paulo”, citando os federalistas norte-americanos John Jay e James Madison, e o brasileiro Amaro Cavalcanti, concitou as instituições a observarem a normatividade constitucional atinente à separação dos poderes do Estado. Houve quem pressentisse ameaças sibilinas de intervenção militar extraconstitucional no escrito. Talvez sim, mas não deixou de ser louvável a atitude do articulista ao submeter ao debate público o seu pensamento, o qual, explicitado como foi, pôde ser sopesado e contraditado pelo escrutínio público. Além do mais, há uma diferença qualitativa no comportamento do general Mourão, ao trazer a público o seu pensamento, em relação ao do general, ministro do governo Figueiredo, a quem se atribuía a sentença, segundo a qual “o cassetete não é santo, mas faz milagres”.
No entanto, vislumbro dois senões no escrito do general, um pequeno e um grande. O pequeno é que o general afirma literalmente que “O federalista”, trata-se de “a famosa coletânea de artigos que ajudou a convencer todos os delegados da convenção federal a assinarem a Constituição norte-americano em 17 de setembro de 1787”. Parece que não, pois o primeiro “federalist paper”, escrito pelo homônimo Hamilton, somente foi publicadoem 27 de outubro de 1787, mais de um mês depois de aprovado o texto constitucional. Na verdade, os artigos de Alexander Hamilton, James Madison e John Jay foram dirigidos não aos cidadãos-delegados à Convenção da Filadélfia, mas aos cidadãos–eleitores, a quem cabia ratificar, ou não, o fruto do trabalho constituinte. São palavras do “founding-father” Hamilton, no texto inaugural, dirigindo-se ao povo do Estado de Nova Iorque: “vocês são chamados a deliberar a respeito da uma nova Constituição para os Estados Unidos da América”.
O segundo senão, o grande, constitui uma omissão grave, visto que, no diagnóstico do general, além de não falar da especiosa invasão do STF, falta um ator relevante, qual seja o presidente da República, que por atos, palavras e omissões, recorrentemente tensiona as instituições da democracia política e do Estado de Direito, tentando malbaratar o sistema de separação de poderes e o sistema correlato de freios e contrapesos institucionais. Observa-se-lhe mesmo um soberbo desprezo e ojeriza pelo princípio constitucional tão caro a Montesquieu, o qual observou que quem tem o poder tende a dele abusar, exceto, se se criarem contrapoderes. Por isso, os revolucionários franceses de 1789 apuseram na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão a cláusula que estatuiu que o Estado em que não há separação de poderes não tem constituição (art. 16). Desde então, tem-se o documento francês como proclamação com validade universal, inclusive, para o Brasil.
Evidentemente, a crítica ao STF não é nova. Não à-toa, ainda reverbera a apóstrofe de João Mangabeira, segundo a qual o STF era o órgão que mais falhava à República, e a consideração de Afonso Arinos, de acordo com quem todos os poderes falharam na República, tendo falhado também o STF, este tanto pelo desconhecimento da sua tarefa política quanto pela “falta de cumprimento do seu dever em horas decisivas”. Nos monumentais “Comentários à Constituição de 1946”, Pontes de Miranda observava que os “os Poderes são, teoricamente, independentes e harmônicos. Não há, em princípio, predominância de qualquer deles”. Entretanto, no plano sociológico, pode um deles preponderar, de modo que um dos Poderes passe a superar os outros, ou porque o seu exercício seja demasiado, ou porque os outros não dão ao exercício a intensidade que seria normal”. Mas as misérias do ativismo judicial são um problema a ser resolvido no nível do diálogo constitucional, da atitude institucional e da mudança constitucional, e não através de diatribes e injúrias.
A propósito, o cientista político Sérgio Abranches, em recente entrevista à BBC News Brasil, observou que o Congresso e o STF têm agido com “luva de pelica” em relação às ameaças em crescendo à democracia política, incentivadas ou perpetradas pelo presidente da República. Cabe ao STF, sobretudo pela sua presidência, afirmar o lugar institucional do tribunal, o de guardião da Constituição. Em 1964, era presidente do STF o ministro Ribeiro da Costa. Homem conservador, afeito à ordem, apoiara o golpe de 64. Todavia, quando sentiu que a integridade do tribunal e a autoridade das suas decisões estavam em perigo, fez saber ao marechal-presidente que, se o furor punitivo dos “revolucionários” procedesse a alguma violência contra o STF, o fecharia, atravessaria a Praça dos Três Poderes e entregaria àquele as suas chaves (é o ‘caso das chaves”, registrado na “Memória jurisprudencial: ministro Ribeiro da Costa”, publicação do próprio STF).
Respeitadas as coisas que mudam, o próprio STF já possui o melhor exemplo de afirmação e de resistência a ser seguido.