A primeira vez que eu me perdi, por HELIANA QUERINO

Foi mesmo a primeira vez?

Se você é um ser vivente neste planeta, pelo menos uma vez na vida já se perdeu: em uma cidade, na rua, num beijo, em um abraço, nos próprios pensamentos, numa crônica, num jardim, nas curvas de uma estrada qualquer ou quando levou um fora.

Certamente já me perdi e também já tive meus foras, mas somente um, eu me recordo, porque foi o único pelo qual me apaixonei. Calma, eu não sou masoquista, o jardineiro é que era um “segredinho”.

Mas não estou falando de fortes músculos, peitoral de almofada, olhos verdes, pretos ou azuis. Os olhos dele eram cor de mistério com algumas interrogações e insistências. Como um pássaro de caatinga magicamente podia passear do ponto A ao ponto X e Y ou algo parecido… Brinca, brinca enquanto constrói uma arapuca bonita. Pra moça curiosa, pode ser um perigo.

Quem era ele?

Era um cultivador respeitadíssimo de espécies da caatinga. Com seus, às vezes, vinte e poucos anos, às vezes cinquenta e poucos ou sessenta, indecifrável quanto a idade. Bem humorado e sério, com opiniões surpreendentes sobre um bocado de coisas. Pequenas ironias eram ditas de forma solta e em finas camadas como cascas da árvore de cumaru. Eu estava diante de uma espécie rara ameaçada de extinção.

O caminho da perdição.

Um dia, apareceu uma carta na minha caixa de correio, um convite para conhecer o cultivo de plantas do “universo” dele. Passada a indecisão, lá estava eu, e ele me esperava no portão. Era um daqueles portões de madeira antiga com design retrô. O moço, com uma sobrancelha arqueada, baixou os óculos, me olhou um segundo nos olhos, mas os segundos até eu me aproximar, olhou somente para meu vestido.

Pensei logo “tem alguma coisa errada, meu vestido está rasgado”, nenhuma pessoa olha assim para um vestido, apertando os olhos e insinuando sorriso com um cantinho da boca. Eu tinha certeza, ia voltar dali mesmo. O que esse jardineiro está tentando decifrar? Será que tá mangando de mim?

Estaria imitando o Anthony Hopkins? Não. Ele vivia ocupado demais com as pimentas rosas e com as flores brancas de Angico rodeadas de abelhas atraídas pelo mel, para se importar com algum ídolo de cinema.

Atravessamos a casa e fomos parar no grande quintal com árvores e plantas da caatinga. Era um trabalho exótico. Combinava com ele...

Eu, mais arisca que um gato, resistente como os pés de pau que o rapaz cultivava.

Ele, tão esperto quanto um gato, tão sedutor quanto um beija-flor-de-gravata-vermelha.

As abelhas, vulneráveis e hipnotizadas com as flores do Angico.

Eu de novo, admirada, – as mãos dele eram como as folhas de  bromélia – longas, estreitas e de vez em quando faziam curvas “andadeiras” e circulares que cuidavam das  palmeiras cilíndricas, dos caules suculentos e das folhas verdes que produziam cera e eram doadas para lojas naturais de batom e perfume.

E, embora eu aprecie a sutileza dos felinos e as aves de tabuleiro, havia uma chance de sofrer pequenos arranhões, se assingelasse demais o perigo e voltasse a atenção total para um cultivador de flores exóticas que se chamava beija flor.

A verdade assustadora é a seguinte: eu não sei o que ele queria. Me dar aulas de botânica. Beijar meus olhos como se fosse papai. Deitar no meu colo como se fosse filho…

O fato é que eu estava bem ali, perdida em algum lugar e não sabia como sair.

           – Você quer café?

           – Não, cuide das plantas, não quero atrapalhar

           – Eu faço questão…

Adoço,  com uma colher e meia de açúcar mascavo, a minha xícara de café. Ele, imagine, engoliu de um gole só e se pôs de pé.

             – Você pretende ir embora que horas?

            – Eu vou agora, só terminar meu café…

“Isso é um grande fora” pensei eu naquela hora, e comecei a refletir: era um exercício para entender o que eu supunha que era “um fora” ou a perdição. E porque eu estava tão preocupada em entender? Por que aquele não era um dia qualquer, era cheio de mistérios, por que ele me convidou? Não era um jardineiro qualquer: O que ele sentia naquela hora, e por que roubou minha atenção? Não era um “macho em crise e nem uma fêmea que se acha”. Ele era,  talvez, o único cultivador de espécies raras da caatinga, e fazia isso no meio de uma selva rendida e vendida, era resistência.

Foi aquele abalo repentino, uma descoberta, um achado inesperado tão bonito que eu tive medo que ele mudasse. Um cultivador de coisas de valor.

Terminei o café e ele me acompanhou até o portão de madeira antiga com design retrô. Segurou minha mão, me chamou de querida, com tanta ternura e beijou meus olhos como papai, mas acertou minh’alma como vulcão.

Eu fiquei como letra de canção “se, ao te conhecer, dei pra sonhar, fiz tantos desvarios… Perdi a noção da hora, me conta agora como hei de partir…

Se os meus pés conheceram teu chão e na “bagunça do teu coração meu sangue errou de veia e se perdeu”…

Nos despedimos e eu disse pra ele: gosto de Hopkins e quem gosta de Hopkins gosta de jardineiro e das coisas que ele cultiva nos seus jardins exóticos.

Heliana Querino

Heliana Querino Jornalista

Mais do autor - Twitter - Facebook - LinkedIn

Heliana Querino

Heliana Querino Jornalista

8 comentários

    • Heliana Querino

      José Freire, ainda vou comentar o teu livro… Obrigada, ele chegou direitinho pelo correio.

  1. Paulo Eduardo de Souza Santiago

    Linda crônica, hoje em meio a tanta beleza, caminhando pelas florestas do Veneto na minha bela Itália cheguei a pensar: “era eu o tal jardineiro?” Parabéns Heliana Querino, a sua imaginação encanta.