Minhas pernas estão cansadas … meus pés sangram … meu estômago está vazio e ideias fervilham na minha cabeça; a exaustão invade o meu corpo.
Pingo do meio-dia, marca o relógio do obelisco da praça. Pessoas caminham apressadas com destinos diferentes, uns com barrigas cheias e cérebros vazios de neurônios … outros com barrigas vazias e cérebros cheios de sinapses, uma bagunça organizada, mas disfuncional.
Um homem elegantemente vestido pára na minha frente, cata uma moeda no bolso e insiste em me entregar. Achei aquele gesto bizarro, entretanto, não me senti bem com minha recusa. Ponderei de forma humilde e amorosa: um rico pobre e um pobre rico … talvez! Mais de meio século no mosteiro, deliciando-me com tudo o que é natural na montanha, afastou-me do vil metal e dos infortúnios da cidade. Longo caso de amor pleno, entre mim e a Natureza.
Melancolicamente, perambulo pelas ruas sob o olhar assustado dos moradores e transeuntes. Vejo-me estranho e procuro conectar-me com José, um homem simples, roupa humilde e com um jornal na mão. Mirei na manchete:
“No Brasil, 10% dos mais ricos ganham cerca de 17,6 vezes mais que os 40% mais pobres, aponta IBGE”.
Em pé na calçada, discutimos longamente sobre a absurdidade desse fato.
Continuamos a ler e comentar juntos:
“EUA tem a maior geração de riqueza do mundo, no entanto tem a maior taxa de pobreza entre os países da OCDE”.
“EUA não está entre os 30 mais seguros lugares para se morar”.
“Riquezas brasileiras vendidas a preço de bolo em fim de festa”.
As micro expressões da face de José e o brilho de seus olhos aferiam o tamanho do seu interesse por tais informações e o acolhimento da nossa conversa. Concentrado e mascando uma “macaca” de fumo do sertão, ele enfiou a mão esquerda no bornal e tirou o livro A CLASSE MÉDIA NO ESPELHO de Jessé Souza.
Página 261: “Toda riqueza não estaria concentrando-se cada vez mais nas mãos do 1% mais rico se a inteligência coletiva não tivesse sido sequestrada e rebaixada”, leu pausadamente.
Levantei a cabeça para respirar fundo. Estávamos cercados por uma grande multidão composta de pessoas de todos os gêneros, raças e credos. Os gritos IGUALDADE PARA TODOS eram ouvidos de longe. Um travesti desmaiou e foi socorrido carinhosamente por militares. O “tipping point” aconteceu. O Brasil todo acordou.
Latifúndios foram extintos, presídios viraram escolas e hospitais, exploradores evadiram-se, a Natureza deu água potável e alimentos sadios para todos, a soberania nasceu; o povo reina pela primeira vez e a paz, em gestação de perigo há milênios, foi parida pelo útero da consciência política num parto humanizado e indolor no leito das ruas.