Este artigo trata de uma questão que, para muitos e até pouco tempo, já estava morta e em via de sepultamento: o Estado. Contudo, parece que a peste que assolou o mundo neste ano a fez ressurgir com considerável força.
Fiquei um tanto congestionado mentalmente com tantos assuntos e temas, candentes e interessantes, que afloraram nos últimos dias. Entre outros, o registro do feminismo “avant la lettre” do general-presidente Ernesto Geisel, o qual, há quarenta e cinco anos, querendo atraí-la para a sua Aliança Renovadora Nacional (Arena), salientava que “a mulher tem o direito e o dever de participar da vida política e que os homens não devem temer essa participação”, pois, “se a mulher assumir postos de comando, será ótimo” (O Povo, 13/11/2020, p. 19). Também me intrigou a avalição feita pelo atual presidente da República, que, pressuroso, sentenciou que a esquerda foi varrida eleitoralmente no último dia 15, embora um dos seus “zeros” tenha ficado abaixo do campeão de votos, pertencente ao Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), na disputa por um assento na Câmara de Vereadores da cidade do Rio de Janeiro. Ainda mais, muito impressionado com os despotismos de variados calibres, velhos e novos, que se perpetram nestes tempos difíceis, pensei em escrever sobre a assertiva spinoziana, segundo a qual “essas turbas” (a expressão é do próprio Spinoza) não nos deve inclinar nem a rir nem a chorar, mas, sim, a observar a natureza humana.
Todavia, a escolha trágica acabou por dar-se acerca das consequências políticas benéficas da pandemia da Covid-19 sobre o Estado. De fato, o seu raio de ação, em intensidade e em extensão, tem impactos múltiplos. Cito duas matérias jornalísticas que especialmente me chamaram a atenção. Uma, a pandemia provocando a exponenciação dos conflitos bélicos, com primeira guerra dela decorrente irrompendo na Etiópia, onde um dos entes subnacionais do federalismo desse país pegou em armas, por conta da suspensão pelo governo central – sob a alegação de cuidados sanitários – do processo eleitoral. O que levou o governo de um Prêmio Nobel da Paz a ordenar o bombardeio sobre a província rebelada. Outra, a pandemia concorrendo para a majoração da chacota universal contra o ridículo de autocratas escrachados ou enrustidos. Não me refiro ao Brasil neste momento, mas a um país da Ásia Central, o Turcomenistão, em que o ditador acabou com a pandemia muito rápida e eficazmente: proibiu o uso da palavra “coronavírus” pela burocracia estatal, a imprensa e os indivíduos em geral.
Por tudo, a questão do Estado reaparece a interpelar os que pensam a política teoricamente e os que a pensam como mecanismo para soluções imediatas aos desafios previsíveis ou imprevisíveis. Nas últimas décadas do século passado alteou-se, com pretensões hegemônicas, a ideia de sacrificar-se o Estado em adoração ao deus Mercado. Duzentos anos de liberalismo econômico não foram suficientes para o reconhecimento de que a “mão” do mercado podia ser invisível, todavia, tinha o guia que a conduzia para a manutenção da desigualdade, a concentração da riqueza e a condenação sempiterna de que “os pobres sempre os tereisconvosco”. Assim, assistiu-se ao desmonte, ora mais ora menos, dos experimentos social-democratas europeus do pós-Segunda Guerra, em que o Reino Unido constituiu a tentativa mais radical, com a política de terra-arrasada da primeira-ministra conservadora Margareth Thatcher. Mas nãoexclusivamente ali, vendo-se até governantes de partidos socialistas envolvidos na práticas de políticas destruidoras dos direitos civis, políticos e sociais tão duramente conquistados. E foi-se mais ainda, com a extinção da União Soviética, os países resultantes em grande medida foram muitos receptivos ao avanço neoliberal. E, o pior dos piores, talvez tenha acontecido na América Latina: a Bolívia iniciou uma experiência de desmantelamento do Estado sem ter tido uma Estado de Bem-Estar; a ditadura do general Pinochet, sob o influxo do “Chicago-boys” de Milton Friedman, levou o país a uma situação de quase extermínio, cujas consequências se manifestam gravemente como o demonstra as manifestações recentes e a convocação de uma constituinte. No Brasil, a tentativa de retirar a diretividade do texto constitucional, parcialmente efetivada na prática, foi uma constante.
Em alguns meses, a pandemia da Covid-19exigiu um pesado tributo de vidas humanas e provocou a desorganização das economias nacionais, com o aumento da pobreza e da miséria, o desemprego, a desesperança e o desespero. Não é preciso afirmar que tais consequências perversas são mais danosas e mais profundas nos Estados mais institucionalizadamente precários, com baixospatamares de integração de social e de políticas públicas efetivas e com níveis altos de subdesenvolvimento político e econômico, corrupção e descaso com os direitos básicos da cidadania.
Por tudo, como deixar a busca e o encaminhamento das soluções para problemática tão complexa somente ao Mercado, instituição jurídico-econômica que tem na busca do lucro a razão de existir? de Thomas Hobbes, quando trata “da condição natural da humanidade relativamente à sua felicidade e miséria”, já dizia que, sem o Estado, “a vida do homem é solitária, sórdida, embrutecida e curta”. A peste da Covid-19 atualizou tal asseveração, tornando imprescindível a concepção de um Estado democrático e social de Direito para os tempos os tempos pós-pandemia. Ou seja, há males que vêm com algum bem.