O tempo é, novamente, de pandemia. A “gripezinha”, o “resfriadinho”, da retórica necropolítica bolsonarista, já ceifou, no Brasil, a vida de mais de quarenta e cinco mil pessoas. Neste texto, todavia, tangencia-se outra das pestes enfrentadas pela humanidade, a gripe espanhola. É que, no último domingo, 17 de junho, completaram-se cem anos da morte de Max Weber. Joachim Radkau, na sua monumental biografia, afirma que, no dia 4 de junho de 1920, um dia depois de Corpus Christi, os estudantes de Weber na Universidade de Munique receberam um aviso de que o professor cancelara a aula do dia, por conta de um resfriado. E afirma mais que, dez dias mais tarde, Weber morria: o resfriado se convertera numa gripe; em seguida, numa pneumonia; finalmente, falhara o coração.
Considerando estranho o óbito, as autoridades médicas de Munique mandaram que se realizasse uma autopsia. A causa mortis, a crer, inclusive, nos seus discípulos Karl Loewenstein e Robert Michels, fora a gripe espanhola, que, desde 1918, ceifava a vida de muitas pessoas na Alemanha e no resto do mundo. E, embora tenha cedido terreno depois da primavera de 1919, e desaparecido da opinião pública, a pandemia teve recidivas até 1920, e talvez tenha durado mesmo até 1923.
Weber completara há pouco 56 anos de idade, e, machadianamente falando, lá se lhe ia a ciência em plena frutificação. Ainda segundo Radkau, vivia ele à época “uma primavera de amor e uma euforia como nunca as havia experimentado antes”: Else Jaffé, produção teórica, inserção na vida pública alemã… Superara de todo o colapso nervoso que, anos antes, o afastara da vida acadêmica, e, segundo Reinhard Bendix, “esse homem apartentemente vigoroso passava horas e horas sentado à janela, olhando o vazio”, doença que o levara a periódicas internações em hospitais psiquiátricos.
De fato, foi na segunda década do século passado que, tanto do ponto de vista teórico quanto da práxis, Weber teve a intervenção mais aguda na política alemã. Em 1914, manifestou-se um entusiasta da guerra, inscrevendo-se, inclusive, como voluntário no Exército, todavia, no ano seguinte, tornou-se um pacifista. Em 1917, adepto da monarquia constitucional, embora fosse um severo crítico do kaiser, em quem via o principal mal da vida política alemã, passou a defender o parlamentarismo. Em 1918, foi um dos delegados da Alemanha, em Versalhes, para a assinatura do tratado de paz, e um dos fundadores do Partido Democrático Alemão, de extração liberal. No ano seguinte, foi candidato, sem sucesso, nas eleições para a Assembleia Constituinte.
Nos anos 1916 a 1919, trouxe à luz, entre outros, os seguintes títulos, todos enfeixados nos seus “Escritos políticos”, com repercussão relevante no processo político alemão da época e no pensamento político universal a partir de então: 1916 – Entre duas leis; 1917 – Sufrágio e democracia na Alemanha; 1917 – Parlamento e governo na Alemanha reordenada; 1918 – O socialismo; 1919 – O presidente do Reich, e A política como vocação. Em 1920, publicou a segunda versão, revisada e ampliada do seu texto mais conhecido, mais lido e mais consagrado, “A ética protestante e o espírito docapitalismo”.
No ano de 1918, Weber participou da comissão que se reuniu no Ministério do Interior, nos dias 11 e 12 de dezembro de 1918, com o objetivo de preparar um esboço de constituição a ser apresentado à Assembleia Constituinte de Weimar. Marianne Weber, na biografia do marido, relata que, “ao mesmo tempo em que apareciam os ensaios constitucionais de Weber, o novo ministro […] do Interior, doutor H. Preuss, punha-se a redigir uma constituição para o Reich”, tendo convidado “um reduzido grupo de expertos, entre eles Weber, para uma conferência secreta” e que “este era o tipo de tarefa que Weber desejara”.
A obra teórica e metodológica de Weber acabou por ganhar grande prestígio dentro e fora da Alemanha, e o pensador ganhou lugar destacado na galeria dos “clássicos”, talvez o último dos “clássicos”, segundo Norberto Bobbio. Depois da Segunda Guerra, desenvolveu-se a controvérsia sobre o suposto papel de Weber no que diz respeito à antecipação do nazismo, com o clímax do debate ocorrendo durante a conferência comemorativa do centenário do seu nascimento, no ano de 1964, em Heidelberg. Pretendeu-se, ali e em outros lugares, fazer uma vinculação – ligeira, descontextualizada e irresponsável – do pensador do Estado e da Constituição com a crise permanente da República de Weimar (1918-1933) e os poderes que o artigo 48 da Constituição atribuía ao presidente da República. Em tal controvérsia, contudo, talvez os contra-argumentos em favor de Weber tenham sido os vencedores, nomeadamente quando se indicam a sua oposição ao antissemitismo, a sua defesa da liberdade acadêmica, as suas críticas às lideranças alemãs durante a Primeira Guerra Mundial, a sua admiração pelas culturas liberais da Inglaterra e dos Estados Unidos, a sua ojeriza ao racismo e a sua preocupação com os oprimidos e impossibilitados de decidir a vida livremente.
Por tudo – nomeadamente no Brasil, que vivencia na conjuntura um ataque especulativo de amedontradoras proporções aos valores republicanos e democráticos -, deve ser salientada a confiança na política como a arte de evitar que o convívio humano se transforme em um inferno, encarecendo-se as palavras de Weber relativas à “vocação da política”: “Fazer política significa perfurar lenta e energicamente tábuas duras com uma combinação de paixão e senso de proporção. É certo afirmar – e toda a experiência histórica confirma – que não se teria alcançado o possível se, neste mundo, não se tentasse o impossível”.