Desde pelo menos a segunda metade do século XVIII, mais precisamente nos anos que se seguiram a 1780, quando se pode testemunhar o ápice do Iluminismo e do ativismo do que os alemães chamavam de Aufklärung, isto é, a defesa da ciência e racionalidade crítica, contra a religiosidade ingênua, a superstição e os dogmas impostas pelo ideário de diferentes igrejas, pensava-se na política como caminho para a conquista das liberdades individuais e os direitos do cidadão contra o autoritarismo e o abuso do poder.
É espantoso o que se vê no Brasil hoje, pelo menos a concluir pelo protagonismo que a grande imprensa confere ao que se define, de forma vaga e generalizada, como “evangélicos”, nas eleições que se avizinham. Na contramão de qualquer lógica, mesmo a de natureza numérica, pois que os evangélicos representam algo em torno dos 31% dos brasileiros ante os 50% dos católicos, é como se o segmento (embora importante e digno da melhor atenção), fosse determinante numa campanha em que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva lidera com folga todas as pesquisas de opinião nos últimos sete ou oito meses.
Não se leia no que vai escrito, claro, que o candidato do PT possa, sob qualquer aspecto, descuidar do discurso em relação aos evangélicos, aos quais, é sabido, dedicou, em dois mandatos, o respeito e a atenção de que são merecedores, assim como o são os católicos e os identificados com religiões de matriz africana, os espíritas, os agnósticos e ateus. Não se trata, pois, de traçar um projeto que observe a fé religiosa como algo a ser colocado acima ou abaixo do conjunto de deveres do Estado para com o cidadão.
O que se quer, ou se deveria querer, é que a questão religiosa ocupe na cena da política nacional a dimensão que lhe é devida. Afinal, a sociedade moderna e a teoria crítica no pensamento contemporâneo são herdeiros do Século das Luzes nesse sentido: a razão é o caminho pelo qual o homem busca a sua plenitude, e essa é uma conquista que cabe ao Estado lhe assegurar através de governantes escolhidos pelo povo em eleições livres, transparentes e seguras, a exemplo do que, para o nosso orgulho, tornou-se realidade no Brasil com o voto secreto em urnas eletrônicas.
Quanto à filosofia iluminista em si, no que diz respeito à questão ora explorada no presente texto, com a rapidez e a superficialidade do que é possível nos limites de uma coluna de jornal, valho-me das palavras premonitórias de Voltaire no verbete sobre Deus do seu Dicionário filosófico: “Ano a ano o fanatismo que se espalhou pela Terra recua em suas explorações detestáveis (…) Se a religião já não faz nascer guerras civis, é apenas à filosofia que o devemos; as disputas teológicas começaram a ser vistas da mesma forma que as brigas de João e Maria na feira. Uma usurpação odiosa e ofensiva, fundada por um lado na fraude e por outra na estupidez, está sendo, a cada instante, minada pela razão, que está criando o seu reinado”.
Diante do que tem norteado os noticiários brasileiros, ainda quando se tratando dos maiores, a exemplo do jornal Folha de S. Paulo e da rede Globo de televisão (os comentaristas da Globonews, à exceção de Fernando Gabeira, são panfletários nesse sentido), Voltaire haveria de enrubescer seu avantajado nariz.
Em outros países em que são numericamente dominantes os cristãos*, como os Estados Unidos, de Thomas Jefferson a Joe Biden, a determinação iluminista de separar Igreja e Estado é uma premissa inarredável. Imposições igrejeiras, de qualquer matriz, são garantia de tiranos. E tirania, para a Alfklärung ou qualquer vertente do “esclarecimento”, é um anátema a ser condenado e combatido.
Acenda-se a luz ou morreremos “de” escuridão.
*Pesquisas recentes apontam equivalência quantitativa entre evangélicos, católicos e ateus nos EUA.