A extração da pedra da loucura. Pintura de Pieter Bruegel

A loucura pela corda bamba – parte 2

“De perto ninguém é normal; é verdade!

Mas, pode-se dizer também que: de perto ninguém é anormal”.

Ernesto Venturini.

 

Imagem: A extração da pedra da loucura. Pintura de Pieter Bruegel. 1550.

Imagem: A extração da pedra da loucura. Pintura de Pieter Bruegel. 1550.

A reforma psiquiátrica nos tornava militantes de uma causa que dizia: “manicômios nunca mais!” A luta pela extinção progressiva dos hospitais psiquiátricos, a criação de leitos em hospitais gerais, a substituição do modelo hospitalocêntrico por uma ampla rede de atenção e cuidado às pessoas com episódios de sofrimento mental motivava nossos sonhos e ações.

Duas décadas se passaram e qual é a realidade que encontramos? Em Fortaleza os hospitais mentais continuam a vicejar, a criação de leitos em hospitais gerais é uma falácia e os CAPS estão em situação precária.  Nesse sentido, reencontro num prefácio escrito por Ernesto Venturini nos anos 90, o seguinte temor:

                                                             (…) há o risco que o hospital psiquiátrico, mais ou menos modernizado, com um número de leitos reduzido, continue a desenvolver seu papel “insubstituível”, de salvaguarda para  o controle da “periculosidade” e da “cronicidade” psiquiátrica. Há, ainda, o risco de que a ausência de afirmação do novo modelo dos serviços engendre um sentimento de incerteza nos operadores. É sabido que tal sentimento pode dissuadir a atenção em tono da própria realidade, o que pode estimular um consumo de ideologias. No mercado, existem hoje modelos psicoterápicos e reabilitativos, assim como instâncias epidemiológicas e gerenciais que, embora representem instâncias diversificadas, são, todavia, contaminadas pelo modelo ideológico da “velha” psiquiatria que os gerou (AMARANTE, 1995, p. 14).

O prefácio visionário está no livro “Loucos pela vida”. Neste livro Paulo Amarante e outros autores traçam a cartografia da reforma psiquiátrica no Brasil, com o propósito fundamental de preservar a memória do movimento de reforma psiquiátrica, iniciado em nosso país na segunda metade da década de 70. Além do mapeamento da reforma e da luta antimanicomial, os textos do livro propiciam ao leitor um retrospecto sobre o construto dos paradigmas do saber psiquiátrico, com foco nos antecedentes da reforma. Entram em cena autores fundamentais como Foucault, com a História da Loucura e o Nascimento da Clínica; Goffman, com Manicômios, Prisões e Conventos; Castel, com A Ordem Psiquiátrica, a Idade de Ouro do Alienismo e a Gestão dos Riscos. Complementam a trajetória de consulta teórica Laing e o movimento da antipsiquiatria; o trabalho de Basaglia na Itália pela desconstrução do aparato manicomial e a ruptura com o saber e as práticas psiquiátricas vigentes.

  1. Os jalecos e a azulejaria hospitalar em carne viva

“A psiquiatria sempre colocou o homem

entre parênteses e se preocupou com a doença”.

Franco Basaglia.

Um intervalo de duas décadas separou o reviver da sensação de entrar num hospital mental. Blindada pelo jaleco, senti algo muito parecido quando há alguns anos entrei num presídio, desta vez protegida pela indumentária forense. Nos dois espaços, há uma nítida divisão de acessos e espaços habitáveis. O “estar fora” ou “estar dentro” é logo anunciado pelo olhar perscrutador do porteiro, ao apontar a divisão das portas de entrada dos sãos e dos insanos. A experiência traz para o corpo a materialidade das  palavras de Goffman sobre as instituições totais e sobre o processo de estigmatização. Na obra o autor trata de instituições totais de modo geral, como conventos e prisões e, mais especificamente, lança foco nos hospitais para doentes mentais. Uma forte característica do ingresso numa instituição total como interno reside no processo de mortificação do eu que estará sujeito a uma série de rebaixamentos, humilhações e profanações, além do estigma que o acompanhará como um rótulo, inabilitando o indivíduo para a aceitação social plena.

Dizem que as primeiras impressões a gente nunca esquece. A visão do branco dos azulejos das paredes no hospital e o branco dos jalecos que usávamos. A cada passo dado pelos corredores vazios cresciam os sons dos gritos. A azulejaria asséptica do hospital em contraste com os gritos. Depois encontrei as mulheres medicadas na unidade hospitalar e seus uniformes sem nome. Fui transportada ao trabalho das ruínas de carnes de Adriana Varejão. Vi as vísceras de uma estrutura psiquiátrica que teima em permanecer camuflada pela superfície fria, limpa e branca. Atrelados ao modelo normalizador, os hospitais mentais cumprem sua parte no acordo com a higiene social. A sujeira da loucura prensada e ocultada, como acontece em nosso trato social com a diferença e os diferentes. Metamorfoseada em discursos de intolerância, políticas de extermínio e deságua incólume na lógica imperialista comandada pela ambição financeira.

Imagem: “Ruína de Charque Santa Cruz (quina)”, 2002, obra de Adriana Varejão.

Imagem: “Ruína de Charque Santa Cruz (quina)”, 2002, obra de Adriana Varejão.

Leio novamente O Alienista de Machado de Assis. Encontrar no curso de psicologia tal ânsia classificadora, contaminada pelo complexo de Simão Bacamarte é um tanto amedrontador.  No tear de ficção e realidade temo, como na citação de Venturini, a permanência da ideologia do saber psiquiátrico.   Mais do que isso, temo o crescimento de uma espécie de sintoma social contaminado pela pragmática ação de “bater as metas”, do ideal de perfeição e da excelência do líder. São processos de normalização do humano e todos inevitavelmente terão que ocultar a própria carne em nome da perfumaria do discurso.  Para atingir o modelo de “Humano-azulejo” – sem defeitos, nem rugas é preciso anestesiar a carne que ainda pulsa.

Recordo Lévi-Strauss: o homem é um ser classificatório. Aprendi essa lição pelo mundo jurídico com seus carimbos, burocracias, vaidades e títulos de importância. Um mundo normatizado demais mata o simbolismo das coisas, a experiência criativa, desconhece a poesia. Sabemos que quem caminha muito firme no chão das certezas, arrisca cair no buraco da ignorância. Qualquer pessoa que estude pode aprender o que diz Dalgalarrondo, Kaplan e Sadock; pode aprender a turbinar a atenção e captar as minucias do exame clínico – medir os afetos, o fluxo do pensamento, o aspecto sensório, a cognição. Pode avaliar as perturbações da consciência da pessoa que está na linha do olhar. Pode levantar hipóteses. Pode buscar as conexões na história do paciente e os sintomas presentes e arriscar o diagnóstico. Porém, o mais importante escapa da disciplina dos estudos, pulsa na sabedoria de Jung: “conheça todas as teorias, domine todas as técnicas, mas ao tocar uma alma humana seja apenas outra alma humana”.

O fundamental, portanto, não é classificação da doença. É compreender o ser humano. É estar aberto para a escuta de nossos próprios afetos e o que faz ponte com o outro. É saber que estamos sempre olhando a loucura pela corda bamba. Pois, por baixo das azulejarias que camuflam os dias, o contato com a “loucura” traz junto uma espécie de espelho: o de ver nossa própria loucura escondida. Tal reconhecimento pode propiciar um aprendizado de construir outros possíveis. Mundos mais amplos do que a ânsia classificadora permite. Libertos do jaleco e do uniforme hospitalar. De tudo o que relatei, fica o cerne do dia da visita: ao sair do hospital, achei que estava tudo errado.  Como diz Eliane Brum, os loucos somos nós.

 

Referências das citações:

AMARANTE, Paulo (Coord.). Loucos pela vida: a trajetória da reforma psiquiátrica no Brasil. Rio de Janeiro: Fiocruz, 1995.

FOUCAULT, Michel. A coragem da verdade: o governo de si e dos outros II: curso no Collège de France. São Paulo: Martins Fontes, 2011.

MUCHAIL, Salma Tannus. O dizer-verdadeiro: descrição positiva. Revista Filos., Curitiba, v. 23, n. 32, p. 157-164, jan/junho 2011.

 

 

Ana Valeska Maia Magalhães

Advogada, graduada em Artes Visuais, graduanda em Psicologia, aluna da Escola de Psicoterapia Psicanalítica de Fortaleza e Mestre em Políticas Públicas e Sociedade pela UECE. Autora dos livros “Pulsão Irrefreável: arte contemporânea no feminino” e “Tessituras: em contos, crônicas, poesias e imagens”.

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Ana Valeska Maia Magalhães

Advogada, graduada em Artes Visuais, graduanda em Psicologia, aluna da Escola de Psicoterapia Psicanalítica de Fortaleza e Mestre em Políticas Públicas e Sociedade pela UECE. Autora dos livros “Pulsão Irrefreável: arte contemporânea no feminino” e “Tessituras: em contos, crônicas, poesias e imagens”.

2 comentários

  1. Maria Tereza Portela

    Adoro esse espaço! Excelente reflexão sobre a estagnação do movimento antimanicomial. O manicômio ainda aparece como um local de segregação do tido como louco, neste sentido há mais “higienização social” do que aceitação da diferença. Na minha humilde opinião, como a situação está posta, a última preocupação é com o interno. Parabéns pelo texto!

  2. Sérgio Costa

    “Um mundo normatizado demais mata o simbolismo das coisas, a experiência criativa, desconhece a poesia. Sabemos que quem caminha muito firme no chão das certezas, arrisca cair no buraco da ignorância.”

    Vou roubar esse trecho pra mim! E é bem isso mesmo, Ana…. as loucuras veladas, nossas mini-obsessões impedem de enxergar muitas vezes o próximo como outro humano. É um tanto triste perceber isso no dia a dia: na fila do pão, nos elevadores, no meio da rua… Pessoas pasteurizadas que negam um sorriso, têm medo de um “bom dia”.

    Será que não estamos na barbárie de novo e não nos avisaram?

    Palavras perfeitas, minha querida. Sua sensibilidade é luz plena para nossas mentes.

    Um beijo!