Imagem: obra de Bispo do Rosário, revista Planeta, foto de Heitor e Silvia Reale.

A loucura pela corda bamba – parte 1

1 – A arte, a academia e os compêndios de psiquiatria.

O lugar da exposição já nem lembro.  Que faz tempo eu sei, não cursava a faculdade de Artes Visuais ainda. Lá se vão uns quinze anos. O encontro com a obra do Bispo foi tão marcante que fiz reverência. Um verdadeiro Bispo! O que vi foi um manto  que Arthur Bispo do Rosário confeccionou para usar no dia do Juízo Final. Deu a ele o nome de “O manto da apresentação”.

Imagem: O manto da apresentação de Bispo do Rosário.

Imagem: O manto da apresentação de Bispo do Rosário.

Imagem: parte interna do manto de Bispo do Rosário.

Imagem: parte interna do manto de Bispo do Rosário.

Depois pesquisei sobre a história do artista.  Passou quase toda a vida – de 1939 a 1989, interno na Colônia Juliano Moreira, em Jacarepaguá. Estava diante de mais uma narrativa de entrelaçamento de arte e loucura. Nessa época as coincidências reforçaram a força do encontro. Eu pesquisava as trocas epistolares dos artistas “loucos”. Camille Claudel, a artista de olhos tristes, durante trinta anos escreveu cartas no hospício. Os diários de Lima Barreto. Vincent Van Gogh e Theo.

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Avancei. O  trabalho de Bispo representou o Brasil num dos maiores eventos de artes plásticas, a Bienal de Veneza, em 1995. Suas obras percorrem o mundo em grandes centros expositivos. Quanto às obras até hoje sou hipnotizada pela trama de fios, símbolos, cores e palavras. Para fazer o manto ele selecionava materiais descartados. Desfiava os lençóis do hospital. Reaproveitava os uniformes surrados. Criava instalações, objetos, mapas de mundo. De repente, viajamos com ele. Embarcamos na nau.

Imagem: obra de Bispo do Rosário, revista Planeta, foto de Heitor e Silvia Reale.

Imagem: obra de Bispo do Rosário, revista Planeta, foto de Heitor e Silvia Reale.

Depois desse contato com Bispo foi a vez do Museu de Imagens do Inconsciente. As obras produzidas pelos pacientes nos ateliês de pintura e de modelagem da Seção de Terapêutica Ocupacional, organizada por Nise da Silveira em 1946, no Centro Psiquiátrico Pedro II, ganharam tal grau de apreciação artística que houve inclusive briga judicial pelas obras. Quem era o legítimo detentor? A instituição ou os familiares dos pacientes artistas? Nesse tempo meu interesse era mais jurídico do que propriamente artístico. Na vida são muitas as portas que se abrem sem que a gente perceba num primeiro momento.

Todas essas histórias voltaram agora, quando uma demanda da faculdade de psicologia me fez aportar nos compêndios de psiquiatria. Bem no meio da travessia do curso há uma ênfase especial nas psicopatologias e, de repente, a gente se vê lançado no cerne de um paradoxo. As frias definições da doutrina médica psiquiátrica fazem par com Foucault.  Enquanto um professor fala de classificações de doenças, sinais e sintomas, da importância do diagnóstico, outro trata da História da Loucura e elabora reflexões sobre as práticas e os discursos que legitimam a produção do louco. Instiga a percepção dos atos humanitários de Pinel com olhos multifocais. Esses ângulos diversos do fluxo da história – como o ato de libertar as pessoas das correntes materiais, abre um rasgo na pele do tempo e por ele jorram correntes simbólicas. Então a gente percebe o tamanho do barco que navegamos. Constantemente submetido a ondas instáveis, sempre no risco de naufragar.

Foucault argumenta em seus últimos seminários: “conduzir um navio, cuidar de um doente, governar os homens, governar a si mesmo – pertencem à mesma tipologia de atividade que é ao mesmo tempo racional e incerta”. Então, balançada pelas marés,  olho para os  compêndios psiquiátricos. Frios e objetivos. Repletos de classificações de como detectar uma doença mental por intermédio de exame clínico. Como se dar conta, por esse olhar, de um mundo como o de Bispo? Pelos critérios clínicos quem está no lugar do observador percebe no outro uma série de dados que vão desde a aparência física, passando pela atitude da pessoa aos aspectos sensórios e cognitivos. Após um exame minucioso é lançado o veredicto. Temos um diagnóstico que gruda no sujeito observado como uma segunda pele, ao ponto de substituir o nome da pessoa pelo nome da doença.

Os manuais de diagnósticos de transtornos mentais, como o recente DSM – 5 frutificam a façanha de bombardear nosso cotidiano com a psicofarmacologia mercadológica.  Na introdução do manual está escrito “Força-tarefa do DSM-5”. Quando leio sempre associo com tanques militares e me sinto num campo de batalha. Pode parecer bobagem, mas esta dinâmica está frutificando a banalização da patologia. A lógica do adoecimento mental está produzindo caçadores de diagnósticos aos montes. E como parece que os encontros chamam outros de uma ordem similar, nessa semana encontrei um amigo que estava feliz, saltitante, por ter recebido um diagnóstico de TDAH. Ele festejava o fato de, a partir de agora, poder usar a afamada ritalina. Conheço-o de longa data, trabalhamos na mesma instituição. Ele é uma pessoa agitada, mas isso sempre foi um traço muito interessante de sua personalidade, nunca pensei que seria transformado numa patologia. Então, a gente percebe a produção em massa de anormais normalizados.

2 – O hospital mental

Os encontros se sucederam à abertura do primeiro compêndio de psiquiatria e abriram um abismo interno. Fui confrontada com o livro de Daniela Arbex – “O holocausto brasileiro”, que só consegui ler em doses miúdas, por não suportar o que lia por muito tempo. A denúncia do livro ainda ecoa em meus pensamentos. A crueldade, a desumanização de ser condenado a viver no esgoto de um projeto falido de civilização. Arbex destramou alguns nós cegos da história ao mergulhar nos episódios do hospício de Barbacena – MG, conhecido como Colônia, pela parecença com as práticas de extermínio dos campos nazistas. A jornalista abriu os porões da loucura e exibiu a tragédia de um holocausto que vitimou cerca de 60 mil pessoas.  Quando lá chegavam perdiam tudo: roupas, cabelos, respeito, o nome, quaisquer mediações identitárias ou reconhecimento de personalidade jurídica. Sem direitos ou garantias. Não eram consideradas pessoas.

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Entrar num lugar como aquele era cair no abismo que lucrava com a morte. Arbex narra que os corpos eram vendidos para faculdades de medicina ou decompostos com ácido para a venda dos ossos.  Isso acontecia diante das pessoas que estavam hospitalizadas, um anúncio mórbido do destino que os aguardava. Os vivos costumavam comer ratos e beber urina ou água suja. Isso aconteceu há poucas décadas. Para além da questão histórica levantada por Arbex, deve-se levar em consideração qual olhar estamos lançando para as nossas práticas atuais, na era DSM. É crucial pontuar que a loucura e os ganhos com a administração dos loucos sempre encontram atualização.

Imagem O grito, de Edvard Munch, 1895

Imagem: O grito, de Edvard Munch, 1895.

Uma das versões sobre o que motivou Munch a elaborar a famosa obra “O grito” versa que a impactante imagem foi gerada por intermédio da sensação de agonia experimentada pelo artista ao ouvir, durante um passeio ao pôr do sol, os gritos de desespero de pacientes encerrados num manicômio. Munch escreveu um poema atrelado à obra. Num determinado trecho fala de “um grito infinito atravessando a natureza”.

Foi também por uma demanda da faculdade que estive novamente num hospital mental. Nesse momento do curso de psicologia devo aprender a aplicar a teoria, realizando um exame clínico e desenvolvendo uma hipótese diagnóstica. Como disse acima, não foi a primeira vez que tive contato com a estrutura manicomial. No começo da primeira década de nosso século estive numa instituição deste tipo como advogada e participante da luta antimanicomial. A reforma psiquiátrica nos tornava militantes de uma causa que dizia: “manicômios nunca mais!” A luta pela extinção progressiva dos hospitais psiquiátricos, a criação de leitos em hospitais gerais, a substituição do modelo hospitalocêntrico por uma ampla rede de atenção e cuidado às pessoas com episódios de sofrimento mental.

Obs.: a segunda parte deste texto será publicada na próxima semana.

Ana Valeska Maia Magalhães

Advogada, graduada em Artes Visuais, graduanda em Psicologia, aluna da Escola de Psicoterapia Psicanalítica de Fortaleza e Mestre em Políticas Públicas e Sociedade pela UECE. Autora dos livros “Pulsão Irrefreável: arte contemporânea no feminino” e “Tessituras: em contos, crônicas, poesias e imagens”.

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Ana Valeska Maia Magalhães

Advogada, graduada em Artes Visuais, graduanda em Psicologia, aluna da Escola de Psicoterapia Psicanalítica de Fortaleza e Mestre em Políticas Públicas e Sociedade pela UECE. Autora dos livros “Pulsão Irrefreável: arte contemporânea no feminino” e “Tessituras: em contos, crônicas, poesias e imagens”.

3 comentários

  1. Sérgio Costa

    Continua sempre fantástica sua sensibilidade em relatar experiências que se entrelaçam com as tuas formações, Ana. Belo relato, linhas cheias de emoção e crítica. Gostei muito! Já havia visto um documentário sobre a Colônia. Realmente é de horrorizar a que ponto a institucionalização predatória do ser humano chega.
    Vamos à segunda parte!

  2. Maria Tereza Portela

    Texto maravilhoso, um deleite para os leitores! A linha tênue que divide a loucura da dita normalidade, vista pelo vies da arte, seu grande escape. Bispo e Hocaustro brasileiro, uma história que não pode ser esquecida! Aguardarei ansiosa pelo restante do texto! Parabéns!