A libertação dos imprescindíveis

“Perante um obstáculo a linha mais curta pode ser o atalho”

Bertold Brecht

Há quase um ano perdemos Rosa da Fonseca fisicamente, que hoje está fazendo 74 anos, porque continua viva por seu exemplo de revolucionária imprescindível.

Os seus algozes não podem mais prendê-la num cárcere, como fizeram nos idos dos anos setenta os ditadores militares e seus áulicos civis. Não se pode prender e torturar uma lenda que permanece viva em nossos corações.

É neste sentido que os revolucionários não morrem jamais, e pelo simples fato de terem vivido fisicamente como seres libertados pela chama da própria liberdade pela qual lutaram.

Não se escraviza quem vive de pé.

Nossos imprescindíveis nunca foram convidados para o baile, e tal como os que fazem e servem as comidas e bebidas das grandes festas burguesas, estão sempre na periferia destas, em lugares e mesas segregadas, sem que isto os impeça de se sentirem livres, porque nos bastidores tramam a sua própria festa, que mesmo que quando ainda não ocorra, ali, nos cochichos e olhares, ela está a se conjecturar, e quem conspira contra a segregação já se encontra no caminho da liberdade.

Consta que Che Guevara, preso, ferido, doente, e consciente da morte por assassinato a sangue frio que o esperava por ordem do capital, deitado numa sala de escola pública mal-acabada do interior da Bolívia, como sói acontecer em todas as escolas públicas de um país da periferia desse sistema infeliz, ao ler uma frase com erros em castelhano, chamou alguém para consertá-la.

Este é um belo exemplo de quem vive para consertar, e conserta para viver.

Assim são os imprescindíveis, que não se deixam escravizar, e ainda que presos, sentem-se libertados e de fato o são, porque estão de pé diante de suas consciências cívicas.

Acaso Zumbi dos Palmares, que viveu num Quilombo entre os seus lutando contra o colonialismo escravista português e entrincheirado num espaço no qual a sua etnia se ajuntara nos idos do século dezessete produzindo e partilhando tudo, e mesmo sendo posteriormente dizimados, eram escravos?

Acaso Nelson Mandela, ou Madiba, como os seus o chamavam, em razão da origem do seu clã, que passou cerca de 27 anos em várias celas das várias prisões por onde andou para despistar os seus aliados, e criadas pelos brancos dominantes num país de negros, vítima do Apartheid africano, pode se considerar, ou ser considerado, intelectualmente preso?

Acaso o Capitão Lamarca não se sentiria libertado, mesmo tendo sido cercado e metralhado por uma força bélica imensamente superior numa região pobre do interior da Bahia, e apenas por ter renunciado e denunciado dignamente aos gozos reservados a uma carreira militar com os privilégios dos que tomaram o poder pela força das armas e o mantiveram por longos 21 anos até se exaurirem diante do desgaste de uma população insatisfeita com os rumos que o Brasil tomara?

Será que o Capitão Lamarca não teve prazer em dizer NÃO À TIRANIA e se sentir libertado diante de sua própria consciência?

Estes são exemplos históricos que se juntam ao mais anônimo dos revolucionários imprescindíveis que doaram suas vidas pela liberdade e se libertaram mesmo diante da morte, por não se deixarem escravizar e viveram e vivem pela solidariedade para com os que vieram e virão posteriormente.

São imprescindíveis e imortais aqueles que se revoltaram com a pretensa placidez da opressão das margens que comprimem os rios (Bertold Brecht), e conspiraram nos subterrâneos do poder opressor percorrendo o difícil caminho da ilegalidade oficial que inverte o conceito do justo e considera toda a ação conspirativa como injusta e criminosa.

Pode parecer kafkiana a exaltação da dor que aqui fazemos em homenagem aos que ousaram andar na contramão do sistema, mas ela não é menor do que a dor (infelizmente considerada trivial de tão permanente e generalizada) de um ser humano são diante dos seus filhos sem alimentos, prestes a ser despejado por falta de pagamento do aluguel, e com a luz cortada por conta do desemprego estrutural capita(lista)neado por uma lógica irracional, obsoleta, suicida, ecocida e assassina.

Mas é exatamente a grandeza de quem doa a sua própria vida para que haja vida o que queremos enfatizar neste artigo, até porque a dor dessa nossa gente não costuma sair no jornal, mas nas manchetes da mídia robótica das redes sociais como perigosos subversivos terroristas insensíveis.

Não é por menos que a insatisfação com a negatividade do que está posto estimula a ação irracional de uma criminalidade urbana desorientada (o que é o assalto a um banco diante da sua fundação? – Bertold Brecht), ou pelo ressurgimento de ideias nazifascistas sem o menor pejo e dentro da institucionalidade burguesa a dividir espaços de fala com a esquerda institucional vivendo sob uma mesma base de obsolescência burguesa.

O nazifascismo hitlerista testou o seu poderio bélico ainda em 1937 a pedido de seu compatriota Generalíssimo Francisco Franco, com o envio de aviões bombardeiros alemães matando centenas de civis e iniciou uma guerra mundial na qual pereceram cerca de 50 milhões de pessoas.

A Argentina sob a ditadura militar matou cerca de 30.000 opositores, deixando milhares de crianças órfãs que jamais conheceriam seus pais e que foram adotadas por famílias com pensamentos bem diferentes daqueles das pessoas que as geraram (uma monstruosidade desumana) e Bolsonaro afirmou sem nenhum pejo que o Brasil deveria ter feito o mesmo.

O Chile em recente relatório concluiu que a ditadura Pinochet matou cerca de 40.000 pessoas.

Estes filhotes nazifascistas por aqui também mataram centenas de imprescindíveis; prenderam, torturam ou mutilaram centenas ou milhares de outros; e ficaram impunes graças à conciliação de classes da política promovendo um estímulo para que a história se repita.

É em nome destes heróis imprescindíveis que se libertaram da tirania com a oferenda de suas próprias vidas que permanecem vivas em nossos corações e mentes a quem dedicamos o texto de hoje, dia de nascimento de uma Rosa imprescindível e imortal.

Musica Guernica, do Musical do Corisco (youtube).

Dalton Rosado

Dalton Rosado é advogado e escritor. Participou da criação do Partido dos Trabalhadores em Fortaleza (1981), foi co-fundador do Centro de Defesa e Promoção dos Direitos Humanos – CDPDH – da Arquidiocese de Fortaleza, que tinha como Arcebispo o Cardeal Aloísio Lorscheider, em 1980;

Mais do autor

Dalton Rosado

Dalton Rosado é advogado e escritor. Participou da criação do Partido dos Trabalhadores em Fortaleza (1981), foi co-fundador do Centro de Defesa e Promoção dos Direitos Humanos – CDPDH – da Arquidiocese de Fortaleza, que tinha como Arcebispo o Cardeal Aloísio Lorscheider, em 1980;