A LENTA RECUPERAÇÃO DA MÍDIA COMO CANAL LIVRE DA OPINIÃO POLÍTICA

De Gaulle, como Napoleão, auto-nomeou-se Presidente. Napoleão fez-se Napoleão I, Imperador dos franceses. Criados, ambos, pelas circunstâncias extremas de um país em desordem.

Napoleão, resultado da Revolução e de uma nação convulsionada. De Gaulle, reunificando uma nação destruída pela Ocupação.

A imprensa, prenúncio do que viria a ser a “mídia”, nos dois momentos cruciais da história da França, teve a sua vez de restauração. Cúmplices, dominados pela sedução do poder do Estado, os jornais vergaram-se às incertezas da desordem pública com Napoleão e contra ele — e diante das ameaças crescentes de um Estado totalitário com as esquerdas nascidas e fortalecidas durante a Ocupação alemã.

De Gaulle fez um “escalda-pé” nos jornais colaboracionistas, de direita e nos da esquerda bolchevizada, movidos pelo mesmo ideal de tomada e controle do Estado.

A nova “imprensa” nasceu, assim, de um projeto aberto a todas as orientações políticas e ideológicas do pós-guerra.

Os jornais tradicionais adaptaram-se à nova onda de aspirações democráticas, nascidas com o final da guerra. A imprensa foi “recriada” com as cores da democracia que havia perdido nas bordas do poder conquistador (“le pouvoir conquérant”, segundo a imagem de Morazé).

O “Le Monde” surge, nessa fase de grandes mudanças, como modelo, até então desconhecido na França e no resto da Europa. Um jornal organizado, a exemplo de uma espécie de “cooperativa”. Editores, redatores e gráficos, sócios do mesmo empreendimento, com direito a voz e voto sobre as decisões empresariais e técnicas e as orientações políticas a serem seguidas como respaldo editorial.

A tentação totalitária que ronda os círculos do poder e os arautos da democracia na mídia — espetáculo a que assistimos calados e tomados de medo — não escapará certamente ao julgamento da posteridade, próxima ou distante. Não seria esta a primeira vez que estas correções éticas aconteceriam.

A cada refluxo autoritário a manchar as leves tinturas de civilização que exibimos com certo acanhamento envergonhado, corresponde uma reação, ainda que retardada, tardia, por vezes, inspirada pelos ideais esquecidos de liberdade.

Foi assim, no Brasil, na amarga intermitência dos momentos de ruptura constitucional, na França, na Alemanha e na Itália. Na Espanha e em Portugal.

Em pouco mais ou pouco menos de 130 anos de República, desta República dotada de ares republicanos um tanto suspeitos, atravessamos crises de consciência democrática profundas. Desta democracia, nos recuperamos com muito custo, de forma “lenta e segura” na busca paciente da sua “relatividade”. Os sobressaltos, contornamos-los graças à capacidade que temos de negociar o inegociável.

Ai estão a desafiar o nosso entendimento o Estado Novo, o “1964”, à falta de adjetivo adequado, a “redemocratização” com o advento da “Nova” República, tão velha, antiga e gasta quanto todas as outras, anteriores — e esta longa sessão, interminável e esquizofrênica, de transformismo constitucional.

A democracia é um vício visceral, cria dependência em quem a conheceu um dia ou sabe como estes mecanismos podem ser úteis em uma sociedade plural, na hipótese de funcionarem pelo descuido dos intérpretes da nova consciência política que nos coube compartilhar, à falta de alternativas.

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