A INVENÇÃO DA AVÓ DESCONHECIDA

Um arranjo de palavras

Não muda o fero mundo

Sangra em vão o poeta

O poeta é uma mulher

Que ouve Roberto Carlos

No escuro oco do mundo

 

Maria Moura de Souza

Pequenina concentrada

Preta forte bonita

Abandonada pelo

Branco marido

Nunca pelos orixás

 

Maria Moura de Souza

Guardava cadernos de

Poesia como juras de

Vingança entre os

Cadernos de receita

 

Maria Moura de Souza

Abandonada pelo

Branco marido

De quem herdou apenas

O nome Souza

Com seu Z marcado à espada

 

Abandonada pelo marido

Enquanto agonizava

Abandonada pelo marido

Pelos Orixás Nunca

 

Ela sabia que a palavra

Escrita tinha vindo

De bem longe

Do outro lado

De um oceano sim

Feito de lágrimas

Lágrimas bem mais daqui

Do que de lá

 

E voltou essas palavras

Esse arrumado de letras

Como de insetos aleijados

Contra o lado oposto surdo

Do oceano como índios

Revoltados a cavalo

 

Ela cantou o próprio câncer

Ela cantou a própria morte

Dizia que aceitava

O que dava a vida

Não os homens

Que neles não se pode fiar

Já disse a Bíblia

Que um dia pessoas escreveram

Como um testamento

De sangue e angústia

Uma profunda angústia

Dos ouvidos vazios

 

Maria Moura de Souza

Foi mulher e se desnudou

Sob o peso de um homem

E gerou filhos e descobriu

A grande vocação masculina

Da ida silenciosa

Que depois do gozo

Sua missão está cumprida

As entranhas escuras

Das mulheres que decidam

O destino do mundo

Nada nunca jamais muda

E eles nunca são culpados

Os homens vão embora

Nunca os orixás

 

Que dizer aos meninos

Saídos desse ventre

Quando os meninos

Já têm tudo

Um pouco mais aliás

Se nascem brancos?

 

Maria Moura de Souza

Deu o peito deu a alma

Deu os olhos insones

O quanto pôde de axé

 

Que dizer às meninas

Saídas desse ventre

Quando as meninas

Não têm nada

Ou só um pouco

Se saem brancas?

 

Maria Moura de Souza

Deu o peito deu a alma

Deu os olhos insones

A eterna preocupação

Com aquilo que será e

Um pouco mais de axé

 

Doía mais que a dor

Esse não saber o que será

Que enchia os seus cadernos

Seus cadernos escolares

De interrogações

Como de vermes contorcidos

Ao sol e ao sal

Perguntas que ninguém

Nem nada nunca

Respondeu

 

O corpo definhou no quarto escuro

Entre o silêncio e o murmúrio

Da oração

De outras mulheres

Uma história comum

Mais ignorada que secreta

Num casebre

Entre o Pirambu

E a Barra do Ceará

 

Um pouco além a praia

As ondas o mar

Sempre recomeçado

 

Maria Moura de Souza

Que após teve sumidos os cadernos

Padeceu definhou e

Entre o murmúrio conformado

Da oração de outras mulheres

E das ondas de um mar verde

Uma forma machucada de silêncio

Feminino e marítimo

Um dia morreu

Foi-se do mundo

Do mundo dos homens

Um pouco mais dos homens brancos

Foi-se do mundo

Foi-se do mundo

Abraçada

Abraçada

Abraçada pelos orixás

Pelos orixás

Pelos orixás

Sempre recomeçados

Airton Uchoa

Escritor, leitor e sobrevivente.