A intercessão de Nabuco – por Clauder Ancanjo

— Miau… miau. Mi, miau, miauu. Miau!

Mas, Companheiro Nabuco, eu…

Miau, miau!

Aquele diálogo entre Nabuco e Acácio se dava no momento em que eu era conduzido pelo cabo Florisval para a cela.

Florisval, a carregar-me com a mão firme no cangote, estranhou tão bizarro colóquio:

Coisa de maluco! O detetive amigo do delegado, esse tal de Acácio, parece que conversa com o gato! Mania de doido! Nesta delegacia, meu Deus, aparece cada uma!

Cabisbaixo, eu nada dizia. Apenas um acre sabor na boca, a mente embaralhada, a se perder em lembranças difusas. O mundo a cair junto aos meus pés. Eu, Clauder Arcanjo, cidadão sempre zeloso com as obrigações, trancafiado, preso. Contive as lágrimas.

Antes de ser jogado na cela, o protocolo de recolher os pertences pessoais: relógio, cordão, carteira. Perguntei se poderia ficar com o livro. Sim, estava com a nova edição de O bestiário, de Julio Cortázar.

Pode. Você aqui terá todo o tempo do mundo para esse tipo de coisa disparou Florisval, a abrir a bocarra num misto de riso e achincalhe.

Quanto entrei, percebi que teria companhia. Um magrinho em pé ao canto, a palitar os dentes sujos, e um outro gorducho, deitado, a barriga a vazar pela camisa curta, com uma cara de bolacha e um jeitão de poucos amigos.

Qual a denúncia contra o meninão? inquiriu o magricela, em tom de comando.

Sou inocente, isso não passa de um engano respondi, dando-lhe as costas e ficando com o rosto encostado às grades.

Aqui só entra anjo, meu bem! Não é, Lacerdão? Enquanto me devolvia essa resposta, o magricela soltou uma risada maldosa a cortar a atmosfera pesada do ambiente.

Mas, Naldinho, o cabra é borracha! Veja a bundinha dele! Teremos negócio fresco hoje, concorda? devolveu o tal do Lacerdão; deitado no leito de cima, a coçar e incitar os bagos.

Por reflexo, encostei o traseiro nas grades e levei as mãos ao fiofó. “Só me faltava ser currado!”, pensei.

Não sei como, penso que por me lembrar da traição do Acácio, o meu rosto assumiu uma tez de ódio, uma mistura de brabeza e loucura tomou-me as carnes, outrora tão fracas, e senti os músculos incharem.

Já capei três, e dois a mais não me pesará na conta. Quem quer ser o primeiro? Em Licânia, seus filhos de uma égua, sou conhecido, e reconhecido, como: “Toim, o capador de gente”! gritei, levando a mão direita a um dos bolsos da calça, como se nele houvesse um punhal de capação.

O Lacerdão desceu e se juntou ao Naldinho. Roguei pela proteção de Senhora Sant’Anna, a antever: “Hoje, pelo jeito, me encontrarei com meu pai lá no Céu”.

Os dois conversavam, baixinho. Enquanto eu me preparava para o embate. “Antes de me lascarem, lasco um!”

Como estratégia, pus na cara de cada um deles a imagem, escarrada e cuspida, do sacana do meu inimigo Acácio. Com isso, uma cólera medonha assomou-me às mãos, e senti os dedos em garra, prontos e afiados para o combate.

Naldinho, eu vou primeiro. Adoro esses cabras metidos a valente. Ah, como isso me excita!… falou o detento Lacerdão, enquanto se dirigia em minha direção.

Vá você, Lacerdão! Não machuque muito ele. Você sabe que não gosto de comer carne moída respondeu Naldinho, ainda a palitar os cacos de dentes pútridos.

Venha, venha! Considere-se um homem capado. E saiba que vai ficar mais gordo ainda, cevado, e dará a bunda nos presídios feito um condenado bradei, a exibir gestos de um Bruce Lee caricato.

Vamos parar com esse show! a voz do Florisval abortou o meu ataque de ninja licaniense.

Se afaste, seu guarda, se afaste! Agora a questão é de honra. Pode lavrar nos meus autos, seu Florisval, a capação de dois filhos de uma égua! Sou bicho brabo da ribeira de Licânia! vomitava furioso, enquanto realizava meu balé de ataque socócamaleônico.

A mão firme de Florisval, mistura de “para com isso” e tapa no pé do ouvido, retirou-me do ringue da luta iminente.

Venha logo, seu abestado! levou-me Florisval, por ordem do delegado Peçonha.

Quando o cabo me largou, ainda simulei o meu golpe de preá mourisco; fato que causou espanto (e um pouco de riso) aos presentes.

Uma prisão sempre transforma o homem. Qualquer dia ainda escreverei um alentado tomo acerca desta minha teoria sociológica. Ecce homo, pessoal! anunciou o delegado Peçonha, ladeado por Companheiro Acácio e o gato Nabuco.

Quando corri os olhos pelas dependências, uma legião de amigos, escritores e intelectuais estavam ali presentes, todos com máscaras: Osvaldo Araújo, David Leite, Manoel Onofre Jr., Heliana Querino, Regine Limaverde, Edmílson Caminha, Thiago Gonzaga, Vera Lúcia de Oliveira, Dimas Macedo, Álder Teixeira, Marcos Ferreira, Lilia Souza, Francisco Rodrigues da Costa, Dulce Cavalcante, Kalliane Amorim, Fábio Coutinho, Ângela Rodrigues Gurgel, Adélia Wollner, François Silvestre, Vanda Jacinto, Rizolete Fernandes, Nilton Monteiro, Miriam Carrilho, Sânzio de Azevedo, Agamenon Fernandes, Dr. Boghos, Anderson Braga Horta, Lúcio Alcântara, Raí Lopes, Sueleide Amorim, Flávia Arruda, Thiago Galdino, Valter Silva, Nelson Hoffmann, Dias da Silva, José Nicodemos, Hildeberto Barbosa Filho, Francisco Obery Rodrigues, Antônio Francisco, Vanda Jacinto, Iêda Chaves, Johann Freire, Aécio Cândido, Lúcia Moura, Cadu Paiva, Marlene Maia, Tony Silva, Galego do Jucuri, Patricia Tenório, Nicodemos Sena, Anchella Monte, Jarbas Martins, Paulo Elpídio, Meton, Uélsson

Ao vê-los, as pernas me faltaram, e a emoção aflorou:caí no choro.

Com pouco, um miado de protesto do felino Nabuco, como a repreender-me pela fraqueza do gesto.

Antes da minha liberação, o delegado Peçonha pediu a palavra.

Ele adora discursar diante de celebridades! soprou-me Florisval.

Sempre a zelar pelo fiel cumprimento das letras mortas da Lei, a minha vida tem sido um ofício digno de um Hércules. Melhor, um sacrifício de um Prometeu, permitam-me. No entanto, senhoras e senhores intelectuais, apesar de todas as adversidades, o império da ordem prevalece, e prevalecerá, nesta circunscrição sob a nossa tutela. Honra-nos aqui a presença de tantos valorosos nomes. Contudo, creiam-me, não precisavam se dirigir (muitos vieram de tão longe) até esta delegacia para cuidar da liberação do escritor Clauder Arcanjo. Tão logo se deu a recolha do nominado, um valioso amigo dele fez-se nobre defensor da causa. Arguiu a lei, sacou artigos dos Códigos  Civil e Penal e, com a tinta galharda da amizade, logrou o êxito de sua soltura. Refiro-me a…

E todos se voltaram para o Companheiro Acácio; qual não foi nossa surpresa quando Peçonha arrematou:

Refiro-me ao seu valioso companheiro, fiel irmão e escudeiro, o gato Nabuco. A ele, senhor Clauder Arcanjo, todas as honrarias e graças.

Um silêncio largo tomou as salas apinhadas. Enquanto um “oh…” discreto escapava das gargantas de alguns.

Dirigi-me cabisbaixo, porém resoluto, em direção a Nabuco e fiz-lhe, reverente, a saudação suprema dos ninjas do Serrote da Rola de Licânia.

Sem poder se abraçarem devido às recomendações das autoridades de saúde quanto à prevenção à Covid-19, todos resolveram, de forma uníssona, saudarem:

Bravo, Nabuco. Bravíssimo!

E o gato Nabuco, sob o riso sacana do Companheiro Acácio, roubou toda a cena.

Clauder Arcanjo

Clauder Arcanjo é escritor, membro da Academia de Letras do Brasil. Autor das obras Licânia, Novenário de espinhos, Uma garça no asfalto, Cambono, O Fantasma de Licânia, entre outras.

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