A imponderável leveza do ser

Charles nasceu num lugar distante. Uma pequena vila de casas simples, separadas por extensos terrenos de terra batida, no interior de Alagoas.

Tudo que viveu até os 14 anos foi dificuldade. Seu pai era marchante, a mãe, de casa. As condições familiares haviam lhe privado de muitas coisas que um dia sonhou ter.

Por exemplo, sempre quis ter uma bicicleta, para desbravar as ruas de terra até o pé do Morro do Pneu – nunca soube a razão deste nome.

Por mais que implorasse, seu pai sempre lhe dissuadia da ideia de ganhar seu objeto de desejo sobre duas rodas. Mesmo quando o borracheiro do lugar, de tempos em tempos, lhe avisasse de uma bicicleta usada para vender.

Seus brinquedos se resumiam a coisas banais. Era uma caixa de sapatos com tampas de garrafas, bolinhas de frascos de desodorante e bumerangues de caixas de ovos.

Certo dia pela manhã, quando foi à venda comprar pão, viu um casal bem arrumado tentando se fazer entender com o dono da bodega. O velho comerciante, nervoso e suado, gesticulava, avisando que não entendia nada do que eles diziam.

Charles esqueceu que seus pais o aguardavam com o café na mesa e se encantou com aquelas frases enigmáticas. Parecia o homem de bigodinho engraçado do filme que havia assistido na casa do vizinho.

Quando, finalmente, o casal saiu da mercearia, ouviu o dono dizer:

– Sei pouco do Português, que dirá o Alemão, ora bolas?

Alemão.

Essa língua estranha passaria a ser a nova obsessão de Charles. Queria entender e falar bonito igual aos ‘loiros’ da bodega. Mas como, se nem uma bicicleta seu pai podia lhe dar?

Conversando com um amigo, soube de uma professora que dominava algumas palavras daquele idioma. Mas o lugar onde ela ensinava era longe e jamais seus pais permitiriam que se distanciasse mais que um quilômetro de casa.

E não adiantava resmungar.

Mesmo assim, bolou uma estratégia para chegar até a professora, que lhe incutiria na mente umas lindas frases da Alemanha.

Havia uma possível saída. Tinha o caminhão de entrega que passava sempre às quartas-feiras pela vila. Poderia pedir carona. Mas o motorista, certeza, recusaria. O mandaria ir para casa. Sem calcular os riscos que correria, Charles resolveu ir escondido.

Assim que os entregadores deixaram a última caixa de bebida na bodega, ele subiu e se acomodou entre os engradados. Ficou feliz e ao mesmo tempo amedrontado quando o motor roncou e o veículo arrancou. Quis descer, mas já era tarde.

Agora vou, pensou.

No caminho, foi imaginando como se apresentaria à professora e de que maneira tentaria convencê-la a lhe dar aulas de Alemão, já que não possuía nem uma moeda. Ia dizer que o Padre o enviara. Por certo ela não rejeitaria tão religioso pedido.

Quando avistou as primeiras casas, sentiu ser o momento ideal para desembarcar. De que jeito? O caminhão por certo não iria parar antes de chegar à fábrica, e ele precisava descer e rápido.

Se levantou e, no momento em que iria se apoiar na carroceria, o veículo deu um solavanco e Charles, desequilibrado, foi arremessado para fora. Caiu. Acidente feio. Bateu a cabeça no meio fio. Desacordou.

Uma ambulância o socorreu para o hospital e ele teve que ser operado às pressas. O estado era grave. Na queda, o impacto abriu-lhe uma fenda na testa, que fez escorrer parte da massa encefálica.

Operou. Foram horas e horas de cirurgias para salvar sua vida. Todas no cérebro. Poucos dias depois nova operação. Os médicos o reoperaram seguidas vezes. Tudo minucioso para restar o mínimo de sequelas. E tudo saiu dentro do esperado.

Da UTI, Charles partiu para uma área Semi-Intensiva e, dali, para o quarto. 15 dias após o acidente, chegou a vez das visitas. Seus pais, emocionados, entraram e sua mãe foi logo lhe dizendo:

– Meu filho, que bom que você está vivo!

Charles olhou para o pai, observou o semblante feliz da mãe, puxou a enfermeira pelo braço e perguntou:

Mädchen, die diese beiden Menschen und was soll ich in diesem Krankenhaus zu tun?

Marco Garcia

Marco Garcia é jornalista paulistano. Morou em Fortaleza por 6 anos onde desempenhou trabalhos em diversas áreas da Comunicação. Foi produtor de Jornalismo do programa Eleitoral de TV do Governador Camilo Santana (Eleições 2014), Diretor de Comunicação da Prefeitura de Redenção (CE), Assessor de Imprensa do Prefeito de Redenção (CE), Assessor de Imprensa do Sindicato de Atletas de Futebol do Ceará, Repórter Esportivo nas rádios Clube AM 1200 e Cidade AM 860. Trabalhou ainda para a CUFA (Central Única das Favelas). Antes de se mudar para o Ceará, foi Editor de Conteúdo do Portal Webtranspo e repórter na Revista Webtranspo Info, veículos localizados na capital paulista.

Mais do autor

Marco Garcia

Marco Garcia é jornalista paulistano. Morou em Fortaleza por 6 anos onde desempenhou trabalhos em diversas áreas da Comunicação. Foi produtor de Jornalismo do programa Eleitoral de TV do Governador Camilo Santana (Eleições 2014), Diretor de Comunicação da Prefeitura de Redenção (CE), Assessor de Imprensa do Prefeito de Redenção (CE), Assessor de Imprensa do Sindicato de Atletas de Futebol do Ceará, Repórter Esportivo nas rádios Clube AM 1200 e Cidade AM 860. Trabalhou ainda para a CUFA (Central Única das Favelas). Antes de se mudar para o Ceará, foi Editor de Conteúdo do Portal Webtranspo e repórter na Revista Webtranspo Info, veículos localizados na capital paulista.