A HUMANIDADE DE DEUS – Alexandre Aragão de Albuquerque

As salas de cinema em todo Brasil estão exibindo o filme CORINGA, com a brilhante atuação do porto-riquenho Joaquin Phoenix, sob a direção de Todd Philips. Mas ao assistir ao filme do palhaço, torna-nos impossível não relacioná-lo às produções de Martin Scorsese, principalmente “Taxi Driver”, protagonizado por Robert De Niro no papel de Travis Bickle, um ex-fuzileiro solitário tornado taxista, trabalhando durante as noites na cidade de Nova York. Em sua solidão, é rejeitado por uma jovem pela qual havia se apaixonado. Esse episódio potencializa sua repulsa da sociedade individualista em que vive, desencadeando seu descontrole emocional.

 

Scorsese já havia se manifestado explicitamente sobre os filmes produzidos pela Marvel com seus super-heróis estereotipados como Batman e Homem-Aranha, que se colocam acima do bem e do mal. Para o diretor, aquilo não é cinema, é no máximo um parque de diversões: “Eu já tentei assisti-los, mas não consigo. Por mais tecnicamente bem feitos que sejam, com atores fazendo o melhor que podem naquelas circunstâncias, não é cinema de seres humanos tentando passar experiências emocionais, psicológicas, políticas e culturais para outro ser humano”, afirmou. De fato, CORINGA, de Todd Philips, é um filme psicológico sobre a trajetória de uma pessoa num espaço real que o coloca cada vez mais à margem da circulação de bens materiais e imateriais produzidos socialmente naquela cidade abastada.

 

Uma das obras monumentais de Scorsese é A ÚLTIMA TENTAÇÃO DE CRISTO (1988), baseado no romance do escritor e poeta grego Nikos Kazantzákis, publicado em 1951. Para se aproximar de Deus, alguns cristãos buscam a santidade procurando colocar em prática as doutrinas cristãs. Mas para se aproximar da humanidade, o que Deus precisa fazer? Scorsese na busca de respostas a essa questão, constrói um Jesus humano, trabalhador, carpinteiro, em uma Judeia dominada pelo Império Romano, vivendo um intenso conflito existencial por fabricar cruzes com as quais os romanos as utilizavam para crucificar seus irmãos judeus revolucionários da luta pela libertação política de Israel seu povo. Este dilema será vivenciado em outras expressões humanas de Jesus como angústias, tristezas, incertezas em relação ao que fazer e sobre quem de fato é: um simples humano ou o filho de Deus que deve cumprir uma missão?

 

Assistindo ao filme CORINGA, emerge imediatamente a pergunta scorseseana: por onde anda Deus nestes sofrimentos diários padecidos por Arthur Fleck? E ao mesmo tempo, por onde andam os cristãos, sedentos de santidade, mas indiferentes aos milhares e milhares de Arthur Fleck presentes no dia a dia das cidades da civilização ocidental cristã? O que realmente significa santidade cristã neste contexto de desesperos humanos? São perguntas que envolvem não apenas a dimensão pessoal de resposta, mas a necessária dimensão de respostas políticas.

 

No último dia 12, o arcebispo metropolitano de Aparecida – SP, Orlando Brandes, acenou em sua homilia para duas questões centrais da vida brasileira do tempo presente: “a violência e a injustiça da direita política” e da ameaça do “dragão do tradicionalismo”. Na simbólica bíblica, a figura do dragão está relacionada ao poder do mal e do imperialismo devorador. Tradicionalismo, como se sabe, é um apego exagerado ao passado como forma de garantir privilégios pretéritos, além de impedir o avanço das conquistas das pessoas e das sociedades. Os tradicionalistas buscam interesses próprios utilizando-se da fé para justificar injustiças sociais, tornando a religião um instrumento de alienação e dominação. Esse tradicionalismo católico reagiu violentamente contra a reflexão do metropolita de Aparecida por meio de vídeos e postagens nas redes sociais: o teor das mensagens, ensopadas de raiva e agressividade, a exemplo dos inquisidores do passado, nada mais é do que a confirmação de que o agressor se denuncia pela sua maneira própria de agir.

 

O filme CORINGA vem nos provocar para indagar-nos de que lado nós estamos e o que estamos fazendo concretamente em relação a este estado de coisas.

Alexandre Aragão de Albuquerque

Mestre em Políticas Públicas e Sociedade (UECE). Especialista em Democracia Participativa e Movimentos Sociais (UFMG). Arte-educador (UFPE). Alfabetizador pelo Método Paulo Freire (CNBB). Pesquisador do Grupo Democracia e Globalização (UECE/CNPQ). Autor dos livros: Religião em tempos de bolsofascismo (Independente); Juventude, Educação e Participação Política (Paco Editorial); Para entender o tempo presente (Paco Editorial); Uma escola de comunhão na liberdade (Paco Editorial); Fraternidade e Comunhão: motores da construção de um novo paradigma humano (Editora Casa Leiria) .

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Alexandre Aragão de Albuquerque

Mestre em Políticas Públicas e Sociedade (UECE). Especialista em Democracia Participativa e Movimentos Sociais (UFMG). Arte-educador (UFPE). Alfabetizador pelo Método Paulo Freire (CNBB). Pesquisador do Grupo Democracia e Globalização (UECE/CNPQ). Autor dos livros: Religião em tempos de bolsofascismo (Independente); Juventude, Educação e Participação Política (Paco Editorial); Para entender o tempo presente (Paco Editorial); Uma escola de comunhão na liberdade (Paco Editorial); Fraternidade e Comunhão: motores da construção de um novo paradigma humano (Editora Casa Leiria) .