Algumas leituras recentes ampliaram a minha pobre visão sobre o longo processo a que se entregaram os “fundadores” da Humanidade no seu afã de buscar interpretação e explicação para o que nunca chegamos a entender no funcionamento de um sofisticado mecanismo
situado a meio caminho entre o sagrado e o profano civilizacional.
Estou a referir-me ao exaustivo processo da Criação que, ao contrário do que nos fizeram crer os seus narradores, não se realizou em apenas oito dias, com o descanso de Deus incluído nestes haveres fundacionais. Sobrou trabalho e padecimentos para muita gente, nestes dois mil anos arrastados pelas ambições, lutas e perversas intenções para o salutar aprisionamento das almas nos domínios da Fé.
Deslumbrei-me com a extraordinária valia do equipamento de racionalização disciplinada e pertinente de duas alavancas postas ao serviço de uma lógica do entendimento criacionista: a retórica e a dialética.
Os teólogos foram adiante e criaram, segundo o seu merecimento e competência, uma teologia da história e explicaram aos homens e às mulheres, produto da Criação divina, porque éramos criaturas de Deus, modeladas à sua imagem e semelhança. Ou quem sabe houvéramos modelado o Deus que abraçamos à nossa própria imagem e semelhança?
A Igreja, a exemplo de todas essas Casas de fruição das verdades da fé, são intemporais por natureza. Por isso mesmo consolidaram-se como entidade soberana— a “kirch”. Nestes laboratórios de hermenêutica bem construídos são tecidas as explicações essenciais para a demonstração dos mecanismos que conduzem todo o imenso patrimônio da Criação.
Não fiz estes rodeios senão para ressaltar a surpreendente revelação do poder das palavras e dos artifícios da lógica em relação a questões e persignações estritas e fundamentais a respeito da nossa presença na obra da Criação.
Minha intenção foi prestar testemunho sincero e espontâneo sobre o valor do método e da contrição, voltados para o esclarecimento sobre a existência de Deus e da Sua obra. Não é um discurso de catequese, não trago comigo bagagem, argumentos ou contraditórios suficientes para empreender essa viagem. Sequer trago comigo as certezas da Fé.
Este pobre texto resulta da sedução da palavra e da força que surge em muitas passagens das Escrituras, e de revelações iluminadas nestes 2024 anos da descoberta dos caminhos da Salvação por obras da Providência. É verdade, entretanto, que a argúcia das explicações sobre a construção da Fé projetou-se em fontes paralelas, o Talmude e o Alcorão, livros de registros literários e históricos exemplares.
Em um livro notável, fruto de uma pesquisa realizada por dois etnólogos húngaros com base na versão de fatos bíblicos colhidos em alguns vilarejos sobre o território linguístico da Hungria, entre populações criadas no fundamentalismo de crenças cristãs essenciais, descobre-se como as narrativas dos apóstolos e a teologia construída sobre a sua palavra foram “lidas” e percebidas, dois mil anos decorridos da grande Paixão. [“La Bible Paysanne”, Annamária Lammel e Ilona Nagy, Éditions Bayard, Paris, 2006].
Os autores coletaram narrativas em regiões diversas do país e surpreenderam-se com a unidade de concepção de uma outra Bíblia que aparecia “comme si quelqu’un avait dans le passé rattaché ces récits en un corpus organique” (p. 5).
As análises filológicas dos textos incorporados a essa Bíblia “camponesa” provam surpreendentemente certas convergências e uma evidente unidade da narrativa sobre fatos e personagens.
A um processo natural de hermenêutica camponesa, de interpretação de antigas narrativas, feitas em linguagem circunspecta e fantástica, o texto expõe como os fatos podem sofrer transformações ou, dadas as circunstâncias, conseguem preservar relatos constantes das Escrituras e de outros testemunhos, segundo o entendimento de novos narradores das mesmas verdades aceitas, consagradas.
A “verdade” mora no entendimento do receptor, não se esgota na veemência do formulador das narrativas bem engendradas. A realidade, reconstruída em outras narrativas, guardam, entretanto, notável semelhança com a mensagem original.
O texto, como pretendia Barthès, resulta de uma construção compartilhada entre o autor e o leitor, entre o “emissor” da “Revelação” e o seu “receptor” e intérprete. Afinal, para ele, toda escrita fundamenta-se em textos anteriores, reescritura, normas e convenções — povoados por um certo sentido de coisa guardada, de narrativas anteriores acondicionadas em certezas aceitas. [“Le plaîsir du texte”, Roland Barthès, Éditions du Seuil, Paris, 1973]