A falência das moedas

Ainda em 2020, o Tribunal Constitucional de Justiça da Alemanha proferiu uma decisão proibindo o Banco Central Alemão na participação da emissão de euros pelo Banco Central da União Europeia para o socorro financeiro e incremento da pretensa retomada do desenvolvimento econômico do bloco.

Tal decisão daquele ano provocou um estremecimento enorme no sentimento de soberania de decisões do Banco Central da União Europeia que é incumbido da emissão do euro, que assim, não pôde contar com a imprescindível participação alemã por intermédio do Bundesbank.

 A reação dos países que compõem a área econômica da União Europeia pelos seus representantes, Christine Lagarde, então Presidente do Banco Central Europeu, e Ursula van der Leyen, Presidente da Comissão Europeia, foram fortes e demonstraram como a questão da soberania nacional em questões financeiras mais se parece com a solidez de um castelo de cartas que desmorona ao primeiro teste de ventania mais forte.  

Vejamos o que disseram essas duas mulheres responsáveis pela manutenção da unidade do controle monetário europeu em tempos de paralisia da produção e circulação de mercadorias causada pela depressão econômica que já vinha sendo anunciada e que então se agravou com a crise sanitária do coronavírus (o inimigo invisível da humanidade, sem teor ideológico, e com poder de infecção progressivo que causou muitas mortes graças à alta percentagem de letalidade, somente freada com as vacinas):

“ Ursula von der Leyen, salientou que a Alemanha não tem o direito legal de contestar a UE e ameaçou entrar com uma ação judicial dizendo: a recente decisão do Tribunal Constitucional alemão colocou sob os holofotes duas questões relacionadas à União Europeia: o sistema do euro e o sistema jurídico europeu.
A Comissão Europeia se reserva o direito a três princípios básicos: que a política monetária da União é uma questão de sua exclusiva competência; que a legislação da UE tem primazia sobre a lei naciona;l e que as decisões do Tribunal de Justiça da União Europeia são compulsórias em todos os tribunais nacionais.
A última palavra sobre a legislação da UE é sempre dada em Luxemburgo. E somente em Luxemburgo. A missão da Comissão Europeia é salvaguardar o bom funcionamento do sistema do euro e do sistema jurídico da União”.

Por sua vez Christine Lagarde não se intimidou diante do Tribunal Constitucional Alemão e disse:

“somos uma instituição independente, prestamos contas ao Parlamento Europeu, respaldado por mandato. Continuaremos a fazer o que for necessário… para cumprirmos nossas obrigações no que diz respeito a este mandato. Determinados, não arredaremos o pé.”

Contrariando o posicionamento desses dois importantes organismos dos países que compõem o bloco europeu de nações, tanto a imprensa alemã como membros do Tribunal Constitucional da Alemanha justificaram as medidas judiciais relativas a questões de controle monetário.

Nesse diapasão disse Peter Michael Huber, Juiz membro do Tribunal Constitucional da Alemanha, em entrevista ao jornal alemão Frankfurter Allgemeine Zeitung:  

“o que me surpreende é a parcialidade e o tom veemente utilizado por certos indivíduos por aqui. Está mais do que claro que o Tribunal de Justiça da União Europeia vem reivindicando há 50 anos a precedência ilimitada à lei europeia, mas quase todos os tribunais nacionais constitucionais e supremas cortes se opõem a isso há tanto tempo quanto. Enquanto não vivermos em um superestado europeu, a condição de cada país membro é ser governado por sua lei constitucional”.
Huber alertou que a ameaça de ação legal da Comissão Europeia será um tiro que sairá pela culatra:
“uma ação judicial desencadearia uma escalada significativa, que poderia mergulhar a Alemanha e outros Estados Membros em um conflito constitucional difícil de resolver. No longo prazo isso enfraqueceria ou colocaria em perigo a União Europeia”.
Numa entrevista ao Süddeutsche Zeitung, Huber salientou:

“Do ponto de vista da presidente da Comissão Europeia Ursula von der Leyen, a lei europeia sempre se aplica sem qualquer restrição. Isso está errado. Outros Estados Membros da UE também partem do princípio de que as constituições nacionais têm precedência em relação à lei europeia.”
“A mensagem ao BCE é realmente homeopática. O banco não deveria ver a si mesmo como ‘Mestre do Universo’. Uma instituição como o Banco Central Europeu, que dispõe apenas de uma tênue legitimidade, democraticamente falando, só é palatável se observar rigorosamente as responsabilidades que lhe são conferidas”.

Corroborando a posição jurisdicional, Klaus-Peter Willsch, membro do parlamento alemão, assinalou que a decisão demoliu as reivindicações absolutistas de poder da Comissão Europeia, do Banco Central Europeu e do Tribunal de Justiça da União Europeia:

“não nos esqueçamos jamais, a Europa não é um Estado federativo e sim uma comunidade jurídica desenvolvida a partir do núcleo fundador de uma comunidade econômica em áreas claramente delimitadas da soberania nacional. Qualquer soberania da União Europeia é derivada apenas da soberania dos Estados membros que a compõem. É por esta razão que o artigo 5 (2) do Tratado da União Europeia declara:

‘Nos termos do princípio da atribuição, a União agirá apenas dentro dos limites das competências a ela conferidas pelos Estados Membros nos Tratados para atingir os objetivos nele estabelecidos. As competências não conferidas à União nos Tratados permanecem com os Estados Membros’.”

“Portanto, acho que as críticas à decisão dos magistrados alemães não são apenas inapropriadas, como também completamente infundadas.”

“Na semana passada, nosso tribunal constitucional defendeu os interesses dos cidadãos alemães. O tribunal lembrou ao Banco Central Europeu e ao Tribunal de Justiça da União Europeia os limites da lei aplicável. Agora, cabe a nós na política, com gratidão, aceitar e implementar a decisão do Tribunal Constitucional Federal, em vez de sair atirando contra os nossos juízes dos tribunais constitucionais como se fossem inimigos da Europa! O estado de direito alemão é dinâmico e protege seus cidadãos! Todos nós deveríamos brindar!”

Esses são os fatos que explicitam a controvérsia e conflitos de interesses relativos à emissão de moeda única num bloco continental formado por países que a elegeram num universo de interesses capitalistas dessemelhantes e capacidade produtiva de mercadorias igualmente diferentes.  

A causa de base desse conflito foi prevista por Karl Marx há cerca de 160 anos, ainda que os seus detratores ideológicos não o queiram aceitar, e consiste:
a) no fato de que a capacidade de reprodução da massa global de valor e de mais valia, além de deixar um rastro de sangue (vide duas guerras mundiais) e de exclusão (os salários tendem a ser reduzidos de valor e de quantidade), é reduzida diante da obsolescência do trabalho abstrato em maior proporção que os novos nichos de trabalho surgidos;
b) que tal redução de salários e de volume de força de trabalho, forçada pelo regime concorrencial de mercado entre capitalistas (que se destroem como adversários e jamais podem se solidarizar pelo bem social), se opera pelo desenvolvimento tecnológico da produção que conspira contra a própria dinâmica de necessidade de progressão ad infinitum para sua sustentação;
c) que a lógica do capital consiste numa disputa de hegemonia mercadológica que vai desde a menor de sua célula (um pequeno comerciante de bairro) até grandes conglomerados industriais, comerciais e financeiros, que muitas vezes se fundem como forma de obtenção do monopólio mercadológico, ou seja, quando se unem é para destruir alguém;
d) que na guerra concorrencial de mercado vence quem produz com menor custo e melhor qualidade, e na guerra sempre existe um inimigo a ser vencido e não um solidário parceiro a quem se deve ajudar.  

Portanto, como se querer que haja solidariedade entre os países da UE, se eles competem entre si, e tal competição envolve a relação comercial com outros países fora do bloco que precisa ser vencida?  

As moedas são (ou devem ser) meros signos do valor mediante a escala numérica que lhes são auferidas pelos Bancos Centrais, e regular o valor de cada mercadoria dentro do critério de produtividade de cada uma.  

Assim, quando desconectadas das relações econômicas ditas válidas (produção de mercadorias) elas não passam de documentos falsos que mais cedo ou mais tarde evidenciam tal falsidade com catastróficos resultados econômicos e sociais.  

Ora, num quadro de recessão econômica como o que está a se configurar, e que impõe a necessidade emergencial de emissão de moeda sem lastro para o socorro dos países de economias mais frágeis (como ocorreu no caso da Itália, Grécia, Portugal, Espanha, e outros integrantes do Bloco da União Europeia, ainda em 2020), tal emissão perturba os países de economias mais resistentes à crise.
A Alemanha não deseja que a moeda única adotada venha a ser objeto de perda de credibilidade acentuada em razão desse comportamento monetário de socorro, cuja perpetuação causaria graves resultados colaterais no futuro próximo.    

No capitalismo ninguém quer continuar sócio de alguém que esteja falido e traga os ônus de sua falência para dentro da sociedade, no caso presente, os países pobres do bloco europeu. É isso o que está a acontecer nesse conflito monetário europeu no qual o poder judiciário, sempre submisso aos ditames da ordem capitalista a que serve, é chamado a meter a sua colher.  
Os argumentos de parte a parte, antes transcritos, se circunscrevem a um ao universo de contradições e falência sistêmica do capitalismo em fim de feira.
Foi num momento de crise até menor do que o que ora se configura que surgiram teorias totalitárias como o nazifascismo,  no qual a Alemanha arrasada pela primeira guerra mundial, e se sentido devidamente fortalecida 20 anos após, resolveu peitar a Europa e outros países dando origem ao maior conflito bélico da história da humanidade.  

Interessante notar que ao mesmo tempo em que os europeus começam a se desentender, os Estados Unidos desenvolvem uma retaliação comercial com a China, que promete revide, numa repetição de algo parecido entre Estados Unidos e Japão de 1941 a 1945.
Da mesma forma que na crise de 1929/1930, tanto o dólar americano como o euro (que substituiu as moedas europeias, à exceção da libra esterlina) estão novamente sem sustentação e correspondência com o valor que representam ou deveriam representar, e quando isso se tornar evidente, como agora está se conjecturar, teremos que construir caminhos diferenciados e baseados na riqueza material, que é, hoje, absolutamente dissociada da riqueza abstrata.  

A Alemanha, convencida do seu poderio econômico, novamente se insurge contra o bloco que ajudou a criar quando isso lhe era favorável, para, agora, demonstrar o oportunismo capitalista diante da crise que pode lhe arrastar para o abismo.  
Solidariedade não é palavra de ordem entre capitalistas.  

Não chegaremos a nenhum consenso sobre como evitarmos o colapso social catastrófico se insistirmos na mediação social feita por um padrão monetário qualquer, exatamente porque ele representa algo abstrato (o valor), que entrou em disfunção social irreversível e tende a perder a sua validade.
Mas podemos aprender com a história e evitarmos a repetição da tragédia humana de 78 anos atrás. O caminho para isso tem uma única direção: superarmos a lógica cujo modo de produção se tornou absolutamente incompatível com a realidade social e sua sustentabilidade econômica, e com graves consequências ecológicas negativas e promotora de guerras como a da Rússia e Ucrânia e conflitos bélicos assimétricos como o do Hamas e Israel.  
 
Dalton Rosado.

Dalton Rosado

Dalton Rosado é advogado e escritor. Participou da criação do Partido dos Trabalhadores em Fortaleza (1981), foi co-fundador do Centro de Defesa e Promoção dos Direitos Humanos – CDPDH – da Arquidiocese de Fortaleza, que tinha como Arcebispo o Cardeal Aloísio Lorscheider, em 1980;

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