A ESSÊNCIA DA VIDA (2), por Francisco Luciano Moreira (Xykolu)

 

“Nas profundas sombras de seus olhos flutuavam memórias que não pareciam alegrá-lo muito”. (Herman Melville, em Moby Dick. Tradução: Péricles Eugênio da Silva Ramos).

 

A mais extrovertida das abnegadas criaturas – cinco jovens adolescentes e o quase septuagenário condutor do veículo por aplicativo da preferência e do uso restrito deles – que compunham o grupo da visita programada àquele abrigo de idosos, em área residencial de classe média, no coração de bairro tradicionalmente conhecido por ter vida própria, cujo nome remete a uma das mais sangrentas batalhas da segunda guerra mundial, com heroica e decisiva participação dos pracinhas brasileiros, no crepúsculo das férias escolares, no meio da tarde de uma quinta-feira de sol anêmico, de céu completamente desnudo de nuvens, apenas guarnecido por uniforme manto cinza-claro, inânime e imutável, de tempo abafado, nenhum sopro eólico, por mais desvigoroso que fosse, de clima pesado, no limite do suportável, a graciosa e serelepe jovem que, ao atravessar a rua em direção ao portão de alumínio que dá acesso à casa, comovera-se com os nervosos latidos de um cão rasga-sacos, versão atual do vira-latas, aprisionado entre a grade de ferro e a janela de persianas fechada em apartamento do terceiro andar de edifício vizinho, enfaticamente propondo-nos agir em prol da liberdade de “tão maltratado e indefeso ser”, por nós logo demovida dessa ideia por desvio de foco, é ela, enfim, quem comanda a abordagem, dirigindo-lhe a mais clássica das perguntas em situações de igual natureza:

– Como o senhor se chama?

A resposta, ele, um velho e triste senhor, atarracado, rosto arredondado e pele pardacenta, chapéu de palha bege, copa redonda ou sem vinco e aba curta a proteger-lhe o cocuruto e adjacências, aparentemente desprovidos da manta capilar, sobrancelhas espessas, olhar desprovido de perspectivas, nariz ligeiramente aquilino, bigode de pelos brancos, grosso e farto, barba por fazer, a perna esquerda amputada um pouco abaixo do joelho, a cicatriz acariciada insistentemente por uma mão de dedos longos e ainda ágeis, a panturrilha da direita envolta em ataduras recentemente aplicadas, cadeirante de septuagenária jornada pelas trilhas que a vida até então lhe reservara – ora retilíneas, ora curvilíneas e, não raro, serpenteantes, a cruzar planos de nivelamentos vários, planícies de reconfortantes calmarias, planaltos de implacáveis aventuras e consequentes euforias, promontórios de zunintes, uivantes e sibilantes ventanias, vales de acalentadas esperanças, córregos e riachos e riozinhos de fluentes recomeços, ribanceiras de acabrunhantes decepções e até frustrações, desfiladeiros de extenuantes desesperos, despenhadeiros de recalcitrantes angústias, múltiplas encruzilhadas que, amiúde, exigiram-lhe coragem e disposição, além de discernimento, bom senso e capacidade de intervenção na própria trajetória –, ele, o velho senhor triste, nos oferece a resposta em versos:

– Chamam-me os outros de Quinzim Feliz / Um tal Joaquim Feliciano de Freitas / Sou aquele que sempre a rede arma / Mas nunca, jamais, nela se deita… / Rede é pra quem tem preguiça à toa / Sofre de dormência ou de qualquer maleita / Nela se afunda… pra longe a coragem voa / Torce, contorce, retorce… nunca s’endireita.

 

“Mesmo o leito seco de um rio ainda guarda o seu nome.” (Provérbio africano).

 

Percebendo, então, que nos breves interlúdios, a parada marcada entre um verso e outro, mãos e dedos bailavam ritmadamente sobre cordas inexistentes de um instrumento imaginário, agasalhado no peito e apoiado na coxa do coto de perna, revelando ser ele canhestro, indago-lhe com alguma admiração:

– O senhor é violeiro… repentista?

– Sim. – Desfazendo-se apressadamente da viola (tinha de ser viola) imaginária e dirigindo ao grupo um olhar de saudosismo, o triste e velho senhor revela-nos, com voz ligeiramente embargada, um pouco de sua história de vida. – Cresci nos sertões de Quixeramobim, em fazenda de coronel mais brabo que pau de cerca, de quem meu pai era feitor e compadre. Fui vaqueiro na mocidade. Peguei muito boi no laço. Tangi muito gado por caminhos poeirentos, sempre à procura de alimento e água. Tornei-me aboiador. Gostava de entoar pelas pradarias, caatingas e matas fechadas o meu grave canto. Com a voz tonitruante, como me disse certa vez o vigário de Boa Viagem – Filho, você tem uma voz tonitruante, de trovão! –, o meu aboio era respeitado pelos bichos, pelas aves e, mais ainda, pelas gentes, ao ponto de nas bodegas ser proibido de demonstrar esse dom, ante o risco de quebrar copos e garrafas. Quando aprendi a tirar sons das cordas de uma viola, virei cantador, violeiro. Adestrei a minha voz. Cantei as dores e os amores da minha gente, do sertanejo de raiz. Animei muitas festas em casas simples, à luz de lamparina, de candeeiro, tendo a prateada lua sempre como companheira.

– Seu Joaquim, não querendo interromper, mas já interrompendo, por isso peço que me desculpe. – Nesse momento, os jovens já conversam com outros moradores do abrigo; então, puxo uma cadeira de plástico branca para mais perto do seu Quinzim e, enquanto nela me sento, confio-lhe a informação que pretendia. – Meu pai, amigo, também foi violeiro… e dos bons!

– E ele deixou de ser…?

– Bem, acho que quem se descobre poeta, jamais deixa de sê-lo. Ao abandonar as cantorias e desfazer-se da viola muito amada, ele apenas cumpria a promessa feita à sua jovem mulher, que viria a ser a minha mãe, grávida da primogênita e ainda assustada com maus pressentimentos, após sair ileso – por obra e graça do Espírito Santo, no dizer dela – de uma confusão em que se envolvera, na defesa do dono da casa onde ocorria a festa, seu amigo de infância e compadre, quando os dois se arriscaram a até perder a vida.

– Quanto a mim, amigo, eu abandonei a viola por ter-me apaixonado pelo pandeiro, numa opção que ninguém entendeu. Aí virei embolador [agora o instrumento imaginário é um pandeiro]: Chuva na terra / Todo o gado urra / A onça esturra / Na aba da serra. // És filho do mundo / O povo é que diz / A poesia difundo / Sou Quinzim Feliz. Fiz dupla com Neco de Cotinha, um jovem de pele da cor de carvão, cabelo pixaim e de inteligência rara e voz de cantor de gafieira, que tive o prazer de conhecer nas minhas andanças pelo meio do mundo. Ele também fazia poesia matuta; lembro-me de uma [põe a mão direita no queixo, como se pretendesse nela apoiá-lo, mantida a outra no acariciamento da cicatriz no coto da perna, fixa o olhar, por um breve tempo de silêncio, no telhado do alpendre onde nos encontramos, como se buscasse na carcomida memória o fio da meada que desejava puxar e, olhando-me com um leve sorriso nos lábios, calmamente declama]: As achas de lenha no fogo crepitam / O preá perde o pelo no borralho do fogão / O apetite e a fome pela cozinha gravitam / Satisfaz o sertanejo o saboreio do feijão. A gente se apresentava em feiras, quermesses, comícios, aniversários, casamentos, batizados. Juntos, travamos memoráveis batalhas, como esta [e, de novo, surge em cena o pandeiro virtual]: Agora eu vou te avisar / Te cuida, desinfeliz Quinzim / Tua vida está no fim / Tô louco pra te enterrar. Neco me ameaçou; mas eu devolvi a ameaça dele assim: Quem vai te pegar sou eu / Nego do cabelo ruim / Tu vai apanhar é de mim / Até revelar-se: Ai, doeu! Sempre tínhamos plateia garantida, a depositar algum trocado no bojo do chapéu de palha no chão estrategicamente colocado. Chegamos até a fazer versos curtos em cemitério, ao pé do túmulo de um velho e respeitado violeiro: Poeta não morre, jamais! / Sua arte sequer agoniza / Seu nome se eterniza / Ganha outra vida nos anais. Tudo em nome da arte. Afinal, amigo, todo ser vivente é, a rigor, um artista.

– Seu Quinzim, devo reconhecer que, pelo que ouvi, o senhor construiu uma rica história de vida; pelo que vi, o prazer sempre emoldurou a sua arte; certamente daí é que o Feliz se incorporou ao seu nome de artista.

– O Feliciano também ajudou… é claro!

– Sim. Parece que a felicidade fincou raízes na sua família. Se você me permite, eu gostaria de fazer uma pergunta bem difícil… eu diria difícil até de ser feita.

– Compreendo. Você quer saber como e por que eu vim parar aqui.

Aquiesço com um simples movimento de cabeça. E ele, já com a voz meio arrastada, faz mais um breve resumo da sua vida:

– Meus pais só tiveram dois filhos: Joana, minha irmã mais velha, e eu, Joaquim. Joana nunca saiu de casa; cuidou dos velhos até o fim; pouco tempo depois, ela também se foi. Eu nunca me casei, não constituí família. Vivi intensamente; vagueei sem destino certo, mas fui sempre muito solitário. Quando a velhice me bateu à porta, capitaneada por um mal silencioso e danoso – o diabetes –, eu estava só. Não tinha pais, irmã, mulher, filhos, alguém a quem pudesse recorrer. Até os amigos sumiram, razões deviam ter. A visão, muito pouco dela ainda resta. Perdi uma perna; corro o risco de perder a outra. O médico que cuida de mim conseguiu me trazer pra cá. Sou muito grato a ele. Aqui, há um teto que me protege, há anjos que cuidam de mim, há uma família que me acolhe. Somos viajantes de um mesmo barco. Com bom timoneiro e eficiente tripulação. E, assim, vou me preparando para a minha travessia derradeira, que um dia virá… com certeza!

 

“Só quando uma árvore cai, alcançamos todos os seus galhos.” (Provérbio africano).

 

– Meus amores, o jantar vai ser servido. – A voz da cuidadora-chefe ecoa por toda a área alpendrada. E todos reagem da forma que podem.

A tarde já se encaminha para o fim. Já se prepara para passar o turno para a noite. Uma das cuidadoras nos pede que demos a visita por encerrada. Despedimo-nos de todos e nos encaminhamos para o portão de alumínio, por onde saímos. Um simples olhar para trás permite-me ver que a grande mesa de madeira maciça já está repleta de comensais que, com prazer, degustam uma substanciosa sopa de arroz, carne moída e legumes, servida em pratos de alumínio. E essa última imagem me faz lembrar a Santa Ceia… não sei bem por quê.

 

“Prostrado nesta enxerga, sinto a vida

Ir, pouco a pouco, procurando o nada;

Pra mim não há mais sol de madrugada,

Mas sim tremor da luz amortecida.” (*)

 

Antes de partir, um oblíquo olhar para a janela de persianas do terceiro andar do condomínio vizinho me dá a certeza de que o cãozinho “maltratado e indefeso” já não mais sofria na insólita prisão. E a sua ferrenha defensora certamente dele já nem mais se lembrava.

 

 

(*) Primeiro quarteto de soneto cuja autoria é atribuída a um certo Aquiles Varejão, “pequeno poeta, que nunca teve seu quarto de hora de celebridade e hoje está totalmente esquecido”. – Lima Barreto, em Clara dos Anjos.

 

Francisco Luciano Gonçalves Moreira (Xykolu)

Graduado em Letras, ex-professor, servidor público federal aposentado.

Mais do autor

Francisco Luciano Gonçalves Moreira (Xykolu)

Graduado em Letras, ex-professor, servidor público federal aposentado.