A ESQUERDA INSTITUCIONAL NA CENA DE GUERRA E DEPRESSÃO

“O que é um rebelde? Um homem que sabe dizer não.”

Albert Camus

Não me apraz constatar que a esquerda de há muito se conformou com um infrutífero papel de diluição do seu conteúdo revolucionário, anticapitalista, para se adaptar à forma de relação social própria ao patriarcado do sistema produtor de mercadorias tentando humanizá-lo.

O mais grave é que isto ocorre no exato momento da desintegração total, evidenciada pelo pipocar das guerras e movimentos migratórios sem precedentes na história mundial em face da inviabilidade estrutural dos conceitos de forma e conteúdo desse mesmo sistema.

Assim, concorda, implicitamente, com a tese equivocada de que o capitalismo pode se adaptar às mutações sociais próprias ao movimento dialético da história tornando-se eterno.  
Dessa forma, no Brasil, a esquerda institucional oPTou pela socialdemocracia e está definhando juntamente com a sua escolha de administração e participação política: a ordem econômica-institucional capitalista.  

Esta é a razão básica do crescimento da direita, que sem oposição consistente e duradoura, tenta fazer vingar os seus postulados retrógrados que encontram eco numa sociedade desesperada, desinformada e inconsciente de si mesma.  

Por aqui, há quase onze anos, em 2013, mais precisamente na cidade de São Paulo, meca do capitalismo da América do sul, houve uma explosão de insatisfação popular por conta de um gatilho de tal estado de ânimo: um mero
aumento de passagens. Um gatilho que gerou turbulências que perduram até hoje.  

Diante da ausência de comando de organismos sindicais e partidos da esquerda, e condenação do movimento pelo governo federal tendo como Presidenta Dilma Rousseff, a direita “deitou e rolou” com seu discurso neofascista, recebendo apoio de uma classe média que embandeirada de verde-amarelo estimulou o impeachment que veio já em 31 de agosto de 2016, tendo o ex-petista Hélio Bicudo como signatário de pedido aceito pelo abominável Presidente da Câmara Federal, Eduardo Cunha, e referendado pelo legislativo.
Tudo ocorreu num prazo de pouco mais de três anos, e foi o estopim da ascensão ao poder político federal de um Deputado Federal do baixo Clero, e de baixíssima capacitação moral e competência para o exercício do cargo: Bolsonaro, o ignaro.  

Resultado: fomos os campeões em percentagens de mortes por uma epidemia sanitária (cerca de 10% do total das mortes calculadas em 7 milhões quando temos apenas 3% da população mundial), em face da demora do uso de vacinas e incitação governamental à normalização e manutenção das atividades sociais (comércio, produção de mercadorias, serviços, escolas, etc.), para ficarmos apenas neste dado irrefutável de comportamento irresponsável e genocida.  

A ordem capitalista, na sua percepção do desastre sistêmico iminente que paira sobre sua cabeça, encontrou sobradas razões para anular um processo judicial parcial e midiático (não esqueçamos que a mesma Rede Globo que hoje condena a lava jato, é aquela que tinha o privilégio de transmitir ao vivo e à cores as espetaculares prisões e arbitrariedades), e trouxe ao processo eleitoral aquele que poderia vencer o tresloucado presidente candidato à reeleição, que deixara de servir aos interesses dos donos do PIB por sua idiossincrasia.  

Tal qual Tancredo Neves no passado, que sempre serviu de válvula de escape à direita para os momentos de tensões políticas e de ameaças à ordem institucional capitalista, trouxeram de volta o conhecido e moderno conciliador socialdemocrata que para muitos eleitores (trabalhadores desempregados, mal-empregados e pequenos comerciantes) representava a lembrança de tempos mais venturosos: Luiz Inácio Lula da Silva.

O personagem perfeito para cumprir o papel de administrador da crise de depressão capitalista mundial sob o manto da esmaecida estrela vermelha do socialismo mundial cooptado.  
Ufa!! Retiramos o bode da sala!!

Mas, passado ano e meio do alívio, eis que temos que encarar a realidade. Há dez anos temos um PIB pífio, e que se anuncia como ainda menor para este ano do que foi no ano passado, e isso após 10 anos de paralisia econômica.  

Mas não devemos acreditar no senso de justiça das três principais instituições da democracia burguesa (parlamento, judiciário e força militar) a serviço dos donos do PIB daqui e do mundo, que agem de acordo com a direção dos ventos tal qual as antigas birutas dos campos de pousos.  

Temos problemas estruturais que já não encontram paliativos nas conhecidas medidas políticas e econômicas tradicionais que se expressam:
– nos renitentes altos níveis de desemprego;  
– nos baixos salários médios que fazem os sindicatos se silenciarem por medo de demissões em massa e se enfraquecem por não apresentares soluções consistentes para seus associados;  
– na ameaça de retomada da inflação, que representa confisco de salários já defasados;  
– no aumento da criminalidade e poderio do crime organizado;  
– na contradição do discurso de preservação ambiental em contraponto à ênfase na produção e distribuição de petróleo;  
– na necessidade governamental de obediência às exigências ditatoriais de mercado que se contrapõem às justas necessidades do povo, sob pena de êxodo de investimentos;
– na frustração pela sempre postergada retomada do desenvolvimento econômico num mundo em depressão, que promoveria relativo bem estar social;
– nas taxas de juros altas e que incidem sobre uma dívida pública crescente e que penaliza o povo brasileiro (cada buchudinho da favela  paga R$ 3.600 de juros ao sistema bancário e rentistas do mundo todo), e que se diferencia dos juros pagos pelos membros do G7, demonstrando quão extorsivo é o sistema bancário mundial;  
– e tantas outras contradições que se explicitam no fato de não se poder (e nem se querer) negar aquilo a que se serve e do que se serve, ou seja, no fato da esquerda pretensamente anticapitalista receber benesses (sob as mais variadas formas) para administrar e assumir a falência sistêmica capitalista.

Mas, para desespero dos conformistas, há um clima de guerra mundo afora.  

Tal clima de guerra deriva de uma crise estrutural do capitalismo que tenta manter pela força bélica o que já não pode ser contido pelas regras da política diplomática e insatisfação no interior dos países e que gera uma ebulição por conta da pretensão de formação de novos blocos pretendentes a se tornarem economicamente e militarmente hegemônicos seguindo a natureza belicosa e competitiva própria ao sistema produtor de mercadorias.    
Enquanto isso a esquerda perde sua referência revolucionária e se perde numa função estranha ao que é (ou deveria ser) seu ethos original para ocupar um espaço de coadjuvante na administração política do capitalismo decadente.  

Assim, a esquerda institucional abdica do protagonismo na cena mundial que está a merecer uma intervenção propositiva diferente, emancipatória, salvadora, igualando-se ao papel que os atores capitalistas estão a encenar.
O povo, na sua crença ilusória e simplista da capacidade poder político governamental de resolver os problemas que se agravam, vê-se diante da repetida frustração da ação governamental em cumprir tal desiderato, e manifesta o seu desencanto a cada ciclo eleitoral, e assim a vida segue com mudanças cosméticas que não alteram a substância do que lhe serve de base.  

Mas o espaço de manobra é cada vez mais reduzido no tempo e no espaço e esta é a razão pela qual o governo Lula perde prestígio, fato demonstrado pelas últimas pesquisas de opinião pública.  

A política (stricto sensu), na verdade, é um poder sem soberania de vontade que foi moldado para servir ao capital e, portanto, não pode se voltar contra seu criador sob pena de deixar de ser o que é: uma esfera meramente serviçal de um senhor absolutista e ditatorial.

À esquerda cabe se reinventar e confrontar essa realidade, por mais dura e difícil que seja, e para merecer a credibilidade duradoura perante a opinião pública.  

Isto somente poderá ser alcançado com a negação do poder político vertical imanente à ordem capitalista, ou seja, se se despir da roupagem com a qual se travestiu e que se constitui como contradição contida na afirmação concomitante daquilo que diz negar na sua ação político-social.

Dalton Rosado

Dalton Rosado é advogado e escritor. Participou da criação do Partido dos Trabalhadores em Fortaleza (1981), foi co-fundador do Centro de Defesa e Promoção dos Direitos Humanos – CDPDH – da Arquidiocese de Fortaleza, que tinha como Arcebispo o Cardeal Aloísio Lorscheider, em 1980;