A escolha de Sofia brasileira

“Viver é isto: ficar se equilibrando o tempo todo entre escolhas e consequências.”

Jean-Paul Sartre

​Quando do incêndio no parlamento alemão em 1933,o Reichstag, ação patrocinada pelos camisas pardas do Partido Nazista (a milícia paramilitar hitlerista que parte dela fora oficializada como polícia militar), e imputada aos comunistas, como forma de justificar a partir daí um controle total sobre o parlamento e outras ações de repressão política, Adolf Hitler passou a contar com o apoio da população alemã que vinha de extrema penúria do pós derrota na primeira guerra mundial, e que diante da melhoria das condições sociais do pós-depressão de 1929/1930, passara a raciocinar pela barriga.

​O fome e a miséria sempre foram más conselheiras e alvo fácil de lobos salvacionistas que nem sequer precisaram esconder as suas peles de cordeiros.

Foi assim que Boçalnaro, o ignaro, e seu discurso misógino, militarista, nacionalista (mas acenando ao capital com o liberalismo do Paulo Guedes), terrorista, e antipolítico (como um outsider, apesar de ser parlamentar corporativista há quase 30 anos), conseguiu galvanizar para si o apoio de uma população que, desnorteada, já havia manifestado toda a sua indignação em junho de 2013.

​As eleições 2018 foram a resposta eleitoral dos desesperados que, embandeirados de verde-e-amarelo agiram tal qual um náufrago que se apega a uma barbatana de tubarão pensando que é uma tábua de salvação.

​Aqui a metáfora com A escolha de Sofia, o célebre romance de William Styron (que depois serviu de roteiro para o filme homônimo que se tornou um clássico do cinema estadunidense), refere-se ao fato de que a população brasileira está diante de uma difícil escolha na qual aparentemente restou enquadrada em escolher entre o ruim com medo do péssimo.

Perplexa com o desastre de um governo que:
​- é responsável pela morte de pelo menos 250.000 pessoas com seu negacionismo obtuso, e que continua repetindo a mesma cantoria, como se fora um disco antigo arranhado;
– patrocinou uma tentativa de autogolpe ditatorial fracassada;
– patrocina políticas de absurdos retrocessos civilizatórios (como agressão ao meio ambiente, descaso com as populações indígenas, patrulhamento educacional, negação do histórico escravismo racial, diplomacia beligerante, etc., etc., etc.);
– que amarga o fracasso na economia com inflação de dois dígitos, alta do dólar, desemprego e falências empresariais, queda do PIB (ainda menor do que o do Michel Temer), aumento da dívida pública para 84% do PIB;
– aumento do desemprego populacional e da informalidade de sobrevivência; e por aí vai.

Tudo está a indicar que Boçallnaro, o ignaro, já pertence ao lixo da história como o pior presidente da período republicano, o único a ser considerado como genocida, apesar de seus adeptos recalcitrantes e incrivelmente crédulos insistirem em manter na sala, insepulto, o cadáver putrefato a exalar fedor e resistência.

Mas diante do seu abandono por parte de setores expressivos dos donos do verdadeiro poder, o capital, já se assanham os pretensos herdeiros do torno. É a tal da terceira via, que se pretende colocar no lugar de uma segunda via já colocada, o lulopetismo, sem se aperceberem que todas estas vias vão dar num mesmo destino comum inevitável: o desgaste político diante de uma modo de relação social (dinheiro e mercadorias), que está a necrosar em ritmo acelerado.

O povo se vê diante de alternativas políticas que são apenas mais do mesmo que antes já não servia, mas que agora se apresentam como menos ruim, tolerável e aceitável. É aí que mora o perigo…

Até quando vamos viver sob este pêndulo entre a ultradireita com seu falso moralismo e ações elitistas e a cantilena de outros vários tipos de projetos políticos que nada mais são do que profetas de um capitalismo pretensamente bonzinho?

Fico a pensar como será o próximo governo tendo que negociar com os lobos do centrão (como se isto fosse sinônimo de competência e habilidade);
– que não se nega a pagar os pesados juros de uma dívida pública de país da periferia do capital e que se aproxima do total do PIB, sob pena de retaliação econômica internacional que tudo piora?
– como equilibrar o déficit previdenciário crescente, senão negando direitos adquiridos (e rasgando a constituição que juram respeitar…) aos aposentados envelhecidos e inválidos como vêm fazendo ou tentando fazer todos os governos desde 2003?
– como equilibrar as contas públicas dentro do teto de gastos e da responsabilidade fiscal, mesmo considerando as crescentes, legais e constitucionalmente definidas contas públicas da máquina administrativa, diante de uma depressão econômica que reduz a arrecadação fiscal, senão martirizando a população exaurida?
– como promover o desenvolvimento econômico (todos se apegam a tal pressuposto como se fosse uma solução única) diante de uma mundo que vive a depressão econômica sem volta, graças aos próprios fundamentos capitalistas que se quer ativar?
– como promover a sustentação ecológica a partir de um processo de tentativa de retomada do desenvolvimento econômico sob bases capitalistas que graças ao regime concorrencial de mercado não permite que se tenha juízo no campo da preservação do meio ambiente, e que somente vê na produção de mercadorias a solução de todas as mazelas sociais e econômicas?
– como se querer evitar o ecocídio do incêndio da natureza diante de uma lógica de mediação social ecocida, tal qual como se querer apagar o incêndio com gasolina?
Parece-nos que estamos todos diante de um espelho sem que queiramos ver a nossa própria face espelhada nas nossas mazelas contra as quais não nos rebelamos, seja por oportunismo, ignorância, comodismo ou mera covardia.

Neste caso é melhor quebrar o espelho, ou consertarmos as nossas mazelas a partir de novos critérios de relação social e abandono do que está comprovadamente esclerosado? A segunda alternativa exige consciência e coragem!

Outro dia li um antigo artigo do saudoso José Saramago, que lustra tanto o idioma português, sobre as falácias de democracia burguesa, e pude ver que a cegueira coletiva em insistir em algo comprovadamente ineficaz por medo de uma ditadura ainda mais ineficaz, pode ser ainda superada.

Saramago contribui para esta retirada das vendas dos olhos, e é graças a isto que, tal qual um Dom Quixote contra moinhos de ventos, rebelamo-nos ele, eu e tantos outros, contra o que considero uma unanimidade burra.

Tenho oito netos. Cinco meninos e três meninas. O mais velho tem 7 anos e meio, e os quatro últimos acabaram de completar um ano. Quando tiverem 71 anos como o avô que escreve estas mal traçadas linhas, espero que eles possam considerar que a minha pregação desde há muito não tenha sido em vão.

E espero que isto se dê bem depressa…

Dalton Rosado

Dalton Rosado é advogado e escritor. Participou da criação do Partido dos Trabalhadores em Fortaleza (1981), foi co-fundador do Centro de Defesa e Promoção dos Direitos Humanos – CDPDH – da Arquidiocese de Fortaleza, que tinha como Arcebispo o Cardeal Aloísio Lorscheider, em 1980;

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Dalton Rosado

Dalton Rosado é advogado e escritor. Participou da criação do Partido dos Trabalhadores em Fortaleza (1981), foi co-fundador do Centro de Defesa e Promoção dos Direitos Humanos – CDPDH – da Arquidiocese de Fortaleza, que tinha como Arcebispo o Cardeal Aloísio Lorscheider, em 1980;