“Sonho com o dia em que todos se levantarão e compreenderão que fomos feitos para vivermos como irmãos.”
Nelson Mandela.
É diante da tese eventualmente contraditada pela antítese que surge a síntese, que a partir daí se transforma em nova tese que é contraditada por uma nova antítese que se forma, e por aí vai…
É que não existe verdade absoluta, mas apenas relativa, e isso ocorre porque toda a existência material e social está em permanente transformação do seu modo de ser e, consequentemente, os conceitos até então petrificados como imutáveis se dissolvem como gelo no calor.
Há uma frase no Manifesto Comunista de Karl Marx e Friedrich Engels, de 1848, que afirma que “tudo que é sólido se desmancha no ar”, e que posteriormente foi título de um bom livro de filósofo novaiorquino Marshall Berman no qual ele analisa o caráter da mutabilidade permanente das relações sociais.
O contexto da frase se adequa com maior ênfase às relações sociais de produção em face de sua dinâmica de transformação, e que para confirmação de sua validade, serviu até para que o próprio Marx reformulasse seus conceitos sobre o sujeito revolucionário, por ele inicialmente considerado como sendo a classe operária e o confronto da luta de classes seus elementos vitais, para, posteriormente, reconhecer a perda de força reivindicatória e política dessas categorias capitalistas (trabalho abstrato e trabalhador) enquanto tais, para se firmar na decadência do sujeito autômato da forma valor como instrumento revolucionário.
É compreensível que segmentos bem intencionados da sociedade queiram agir de modo a emprestar às relações sociais capitalistas que estão postas um viés de valores humanos e virtudes pela via política; mas, infelizmente, tal pretensão esbarra inevitavelmente na dinâmica interna da produção e reprodução do valor, que por si só é concentradora do próprio capital que produz (movimento autotélico da forma valor), e pior, necessita do aparelho de estado cobrador de impostos que é constituído para lhe servir estruturalmente.
É graças à contradição entre a boa intenção e a natureza da relação social capitalista que se estabelece o impasse governamental de um aparelho de estado nascido e criado para servir ao capital, sem soberania de vontade e que necessita cada vez mais de cobrar impostos a uma população já exaurida pela extração de mais-valia ou desempregada para atender sua função principal de promover o desenvolvimento econômico dessa mesma dinâmica fornecendo-lhe infraestrutura, e ainda “dourar a pílula” com atendimento paliativo de demandas sociais mínimas.
Antes, os revolucionários marxista-leninistas entendiam que bastava retirar das mãos do capital privado a extração de mais-valia e transferi-la para as mãos de um estado pretensamente operário para que a riqueza socialmente produzida fosse equitativamente distribuída, numa demonstração clara da incompreensão da dinâmica autotélica da forma-valor na qual há um dragão insaciável que quanto mais cresce mais precisa ser alimentado.
Como sabemos, cumprida a etapa de desenvolvimento industrial que antes era retardado em relação ao ocidente e passou a ser fechada intramuros na Rússia e na China, países detentores de extensões territoriais continentais que viveram tal experiência, foi inevitável que derivassem para a economia de mercado admitindo a entrada de capitais externos, seja sob a forma de empréstimos (a dívida pública da China, é três vezes valor que seu PIB, é até os juros tornar-se-ão impagáveis, que na hora da verdade vai causar um estrondo no sistema de crédito mundial), ou mesmo sob a forma de produção industrial privada (a Tesla, de Elon Musk, produziu em Xangai, cidade industrial chinesa, 947.000 veículos em 2023).
A forma política russa, ditatorial pela via da eleição nos moldes ocidentais, ou a forma política chinesa do partido único, dito comunista, em nada alteram a essência da dinâmica capitalista que impõe comportamentos de administração do capital similares para esses dois países, como a faz no mundo inteiro (não é por menos que a China é o segundo maior emissor de CO² na atmosfera causando o efeito estufa. O primeiro são os Estados Unidos).
Ora, se nem mesmo as revoluções marxista-leninista e maoista, com total domínio político pretensamente operário e anticapitalista, conseguiram domar a lógica capitalista quando mantiveram intactos os funcionamentos das suas categorias fundantes (valor, trabalho abstrato, dinheiro, mercadorias e mercado), é evidente que a democracia burguesa, cujo norte referencial é exatamente o desenvolvimento econômico (como o quer de Lula a Biden, todos os sociais democratas europeus, ditadores e monarcas sanguinários), como tornar tal forma de relação social minimamente humanizada e socialmente justa, justamente no momento do seu ocaso enquanto forma e pelos seus próprios fundamentos???
Sei que não é fácil desconstruir milênios de cultura escravista que vem sendo sedimentada nas nossas consciências, mas que, felizmente, nos dois últimos séculos, em que pesem os genocídios capitalistas havidos nas duas grandes guerras mundiais (ou talvez justamente por causa delas), cresceu entre nós alguma consciência humanista, quase sempre majoritária e próxima daquilo que é moralmente justo e correto, e de modo que podemos, sob tais bases morais, estabelecermos códigos éticos consentâneos com referida moral.
Considero que se tivermos consciência clara do cunho ditatorial da forma-valor, sob a qual não há possibilidade de se estabelecer uma relação social justa e, agora, minimamente exequível em face da dinâmica das suas contradições internas (a substancial substituição do trabalho abstrato, vivo, pelo trabalho das máquinas, morto, redutor da produção de valor e de sua dessubstancialização gradual) e externas (aquecimento global e suas mazelas cantadas em prosa e verso) estaremos dando o primeiro passo no sentido da emancipação humana.
A divergência do campo da esquerda e, principalmente com a esquerda institucional, inebriada com o falso brilho de um poder político decrépito e submisso, não se trata de mera birra ideológica, como se fôssemos torcedores de futebol apaixonados pelo time de nossa preferência (o meu Botafogo é o melhor do mundo, e isso não se discute, rsrsrsrsr), mas de uma discussão que não pode ser adiada sob pena de sucumbirmos diante dos fatos que se nos apresentam cada vez mais virulentos, e dos quais se aproveitam a centro-direita e a ultradireita querendo parecer convincente (que não é) perante as massas desiludidas.
Tomar um chope ouvindo a música “garota de Ipanema” cantada por Frank Sinatra e Tom Jobim, com um amigo de ideias divergentes das nossas, ou mesmo que seja daqueles que detestam papo-cabeça, não nos torna inimigos, nem yankees adeptos do beija-mão do Deputado baiano Otávio Mangabeira a Dwight Eisenhover em 1946, ou que tal encontro represente uma perda de tempo desnecessária, mesmo que o amigo seja descompromissado com a realidade cruel sob a qual vivemos.
Há que convivermos fraternalmente na divergência ou mesmo com a postura do “tô nem aí”, com a certeza de que podemos e devemos ser diferentes na diversidade que nos torna humanos e convergentes, desde que sejamos e tenhamos boa-fé nos nossos propósitos, até porque para que os outros ouçam as nossas teses é necessário que ouçamos as deles, e que assim, com a tese e a antítese cheguemos a uma síntese, mesmo sabendo que ela será sempre provisória.
Dalton Rosado.
Respostas de 2
Não temos divergência sobre as mazela do sistema capitalista, porém, precisamos sobreviver e nesse espaço tentar respirar e ser felizes(tomar uma gelatina ouvindo música dos nossos gênios), é algo estimulante para nós humanos. Mas, a receita para eliminar a firma-valor da exploração ninguém apresentou até agora. Tanto é verdade que toda experiência da possível utopia, não conseguiu supera- la.
Compreender e viver sob o cunho ditatorial da forma-valor, eu acredito que todos que estão no campo da esquerda sabem porque sofrem as consequências disso, o que se busca( é ninguém deu a fórmula), é como eliminar essa forma-valor, substituindo-a pelo mundo onde se possa viver a emancipação humana. Esse é o X da questão. Vamos à receita da eliminação.