O filósofo marxista italiano Domenico Losurdo (2004) constata que, a partir da Guerra Fria, em plena crise estrutural do capitalismo, com a derrota do socialismo real, impôs-se uma vitória do bonapartismo soft, o qual se constitui como um processo constante de enfraquecimento da democracia, de esvaziamento dos partidos políticos, de decapitação política das classes subalternas e de avanço do processo de desemancipação política ou da negação dos direitos de cidadania na modernidade. Losurdo termina seu livro, Democracia ou Bonapartismo, publicado pela editora UNESP, constatando que:
O processo de emancipação que, nos últimos dois séculos, conquistou o sufrágio universal igual (uma cabeça, um voto), reivindicou a representação proporcional em nome do mesmo valor representativo de cada voto, contestou o monopólio (independentemente de como se configurasse ou camuflasse) dos representativos por parte da riqueza, associou direitos políticos a direitos sociais e econômicos, viu e celebrou a democracia como emancipação das classes, das raças e dos povos mantidos em condição de subalternidade – tal processo parece ter sofrido uma grave interrupção. Neste sentido, estamos diante de uma fase de des-emancipação, uma daquelas que caracterizam o caminho longo e tortuoso da democracia, mas cuja superação por ora não se consegue entrever (2004, p. 333).
O neoliberalismo, como resposta à conjuntura de crise estrutural do capitalismo, efetiva-se pela implantação de um processo de desemancipação política patrocinado por meio de um conjunto sequencial e articulado de ações: desmantelamento do Estado de bem-estar social; instauração da plutocracia como forma de governo, ou seja, de governos emanados da riqueza e a serviço do mercado; capturação do Estado pelo mercado, fazendo com que os setores populares e médios da sociedade diminuam ou não tenham representação política no parlamento; exclusão da representação das organizações da sociedade de instâncias de consulta, deliberações e controle das instituições estatais; ampliação de reformas (trabalhista, previdenciária e administrativa), que desarticulam e enfraquecem o poder de mobilização e de pressão e desestruturam as organizações sindicais da classe trabalhadora; precarização, tornando o precariado e a uberização da força de trabalho a principal representação do acesso à renda do trabalho por meio da informalidade, sem garantias trabalhistas e previdenciárias, com o argumento falacioso de promover maior liberdade e autonomia ao trabalhador; naturalização do abuso de concentração de renda em poucas corporações transnacionais e personalidades e naturalização da violência, como se esses fenômenos não fossem produzidos pela lógica de concentração de renda do capital.
Com a quarta revolução industrial, a classe capitalista alcançou um novo estágio da dominação cultural na disputa por hegemonia, além da difusão de ideias e manufaturação da subjetividade. Trata-se da dominação por meio da produção e controle das emoções, ou seja, do controle das nossas experiências emocionais: felicidade, ódio, ansiedade, indignação, amor, tristeza, raiva, solidão, entre tantas outras que são estimuladas/instigadas/provocadas como parte da chamada guerra híbrida, que consiste em desestabilizar governos por meio de manifestações de massas e valores abstratos como pátria, liberdade e democracia, além de uma política econômica de austeridade. A manipulação das emoções é um instrumento muito poderoso para influenciar, inflamar e dirigir conflitos e disputas carregadas de afetos. É o triunfo do bonapartismo soft, que se caracteriza por constituir um regime político avesso à participação política das massas populares.
As mídias, com seus dispositivos e aplicativos, e todo um sistema de algoritmos, são os meios usados para a produção e a manipulação da subjetividade e das emoções, procedimento que vem sendo largamente utilizado pelo capital para mobilizar pessoas a sentir/direcionar ódio contra alvos que elas elegem como sendo forças hostis dentro da chamada guerra não convencional, a qual parte do pressuposto de que a política é a continuidade da guerra por meios linguísticos, o que implica, dentre outras coisas, a disputa de narrativas e a ideia do pós-verdade. Com o processo de dominação das emoções, parte da indignação social ou mobilização de vontades políticas é fruto de mobilizações manipuladas, como, por exemplo, o uso de fake news na formalização de opinião pública mobilizadora ou criadora de imaginários, principalmente nas redes sociais, fato que aponta para o abandono da democracia e para a instauração da tirania social como modo de sociabilidade entre as pessoas. Trata-se de um esvaziamento das normas morais e de convivência, o que pode nos levar a uma situação de anomia, cuja consequência é a “guerra de todos contra todos”.
Esse fenômeno pode levar, se é que já não tem levado, ao esvaziamento do potencial transformador das mobilizações sociais antissistêmicas, que, manipuladas em suas emoções, podem realizar revoltas enraivecidas e destrutivas, mas que não modificam em nada as estruturas existentes, não abalam o sistema, ficam em uma ação dentro da ordem, como uma espécie de catarse emocional temporária que foge da memória em pouco tempo. Vivemos, portanto, segundo a interpretação que faço dessa obra, um paradoxo, uma crise estrutural do capitalismo que, ao mesmo tempo, promove um processo de desemancipação.
No processo de manipulação e manufaturação das emoções, as pessoas são levadas a uma vida intensa na qual parece que tudo precisa acontecer ao mesmo tempo. A alta intensidade, geradora de ansiedade, é um mecanismo de poder que domina fazendo com que as pessoas percam paulatinamente a sensibilidade para saber o que lhes interessa, bem como o que querem ou o que podem fazer para resistir aos processos de dominação. A razão moderna, mediada pela ciência e pela tecnologia, inventa aplicativos que bloqueiam a capacidade das pessoas de pensar novas formas de vida e naturaliza toda realidade fática, o que leva inconscientemente a um comportamento de fim da história. Não se trata de dominação por meio da repressão, mas por meio da mobilização permanente de desejos que criam indivíduos manipulados em suas vontades, mas que acham que todas as suas ações são movidas por vontade e desejo próprios.
Para o capitalismo, a liberdade econômica precede a vida, pois acumular riqueza é a sua finalidade última, ou seja, a economia tem que ser o horizonte da vida e não a vida o horizonte da economia. Todavia, o conceito de liberdade, que a razão moderna empresta para a economia capitalista, além de ser negativo, significa ausência de impedimento. Vem daí a ideia de livre mercado: ele é um universal abstrato que faz parte da cultura epistêmica eurocêntrica. Já a vida, referente a todos os organismos viventes, é parte do resultado do fluir do cosmo (natureza) ou da Pachamama, como a chamam os povos originários da região andina. Nesse aspecto diferencial, a vida não pode ser comparada com a liberdade.
A liberdade de mercado é a liberdade que alguns poucos têm para explorar a mão de obra da maioria, é liberdade de uns para dominarem outros. É a liberdade tutorada pelo mercado para que a maioria dos indivíduos viva para trabalhar ao invés de trabalhar para viver. Por isso, toda produção de ciência e tecnologia é orientada para potencializar a acumulação de riqueza, o que implica produzir tecnologias e conhecimentos que tornem o uso do trabalho prescindível no processo de produção e acumulação de riqueza, processo que impõe como corolário a necessidade dos capitalistas de implantarem uma diversidade de práticas genocidas para se livrarem dos indesejados, dos excluídos, os quais podem se transformar em um peso ou uma ameaça ao sistema. As prisões, as guerras, a miséria e a desproteção social são instrumentos de uma sociedade de risco e de morte.
Marx e Engels, na obra A Ideologia Alemã, constatam que a primeira premissa de toda a existência humana e de toda história é a de que os homens estejam/se encontrem em condições de viver. “Para viver, todavia, fazem falta antes de tudo comida, bebida, moradia, vestimenta e algumas coisas mais. O primeiro ato histórico é, pois, a geração dos meios para a satisfação dessas necessidades” (2007, p. 50). Portanto, a economia é o conjunto de saberes necessários para solucionar a escassez de bens necessários à existência humana e não para a acumulação de riquezas, pois esta é um mecanismo de poder que gera a dominação, a exploração e a hierarquização de uma minoria sobre a maioria, gera o controle de uns poucos sobre o destino da maioria da população e dos territórios do planeta. Assim sendo, pensar um novo sistema econômico e um novo processo civilizador é o maior desafio posto para a humanidade no século XXI.