Em plena segunda década do século XXI, o Brasil continua configurando na cena internacional como um país politicamente medieval, autoritário, retrógrado, com procedimentos insólitos, literalmente grotescos, por exemplo, como no fato de um general, à época Comandante do Exército, vangloriar-se publicamente de haver ameaçado os juízes e juízas da Corte Suprema (STF), guardiã dos princípios, valores e leis originárias constitucionais, em seu livre exercício como Poder Judiciário, na decisão do julgamento do habeas corpus apresentado pela defesa do ex-Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em abril de 2018.
Habeas corpus é um dos instrumentos jurídicos garantidores dos direitos fundamentais individuais dos cidadãos, listados no artigo 5, direitos que se configuram como cláusula pétrea prevista pelo artigo 60, inciso IV, da Constituição Federal de 1988. O que explicaria tanta selvageria, autoritarismo e desrespeito ao Estado de Direito? Uma pergunta a qual se obriga a ser respondida em sua plenitude, imediatamente, para ficar registrados nos livros da história e na memória do povo brasileiro os interesses que levaram ao ato golpista daquele servidor militar, ao impedir uso do direito de liberdade de Lula contra a ilegalidade e abuso de poder praticado pelo então juiz Sérgio Moro (codinome Russo), ocasionando-lhe sua histórica prisão ilegal.
Nesse episódio é mister destacar que compete ao Senado Federal, em conformidade com o art. 52 da Carta Magna, processar e julgar os Ministros de Estado bem como os comandantes da Aeronáutica, Marinha e Exército nos crimes de responsabilidade. Entre os crimes de responsabilidade, tipificados pelo art. 85, constam “os atos contra o livre exercício do Poder Legislativo, do Poder Judiciário, do Ministério Público e dos Poderes constitucionais das unidades da Federação”. (Inciso II). O Senado Federal nada fez neste sentido até o presente momento.
Em entrevista com duração de 13 horas concedida a Celso Castro, diretor do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil, publicada pela editora da Fundação Getúlio Vargas (FGV) no livro “General Villas Bôas: conversa com o comandante”, o referido general revela que a sentença com a ameaça ao STF obteve aval de outros generais. Portanto, como aponta o antropólogo Piero Leirner, estudioso do comportamento autoritário dos militares brasileiros, autor do livro “O Brasil no espectro de uma guerra híbrida” (Ed. Alameda, 2020), “não foi decisão de uma pessoa, mas foi uma decisão da instituição”. Fato ainda mais grave.
Fica claro que, para o Exército, a partir destas revelações de Villas Bôas, não bastava retirar Dilma Rousseff do poder em 2016. Era preciso aprofundar o Golpe ao impedir o retorno, pelo voto soberano popular, de Lula à presidência do Brasil. E ainda era fundamental eleger um candidato de extrema-direita, um sub-oficial obediente, para implementar uma agenda destruidora de todas as conquistas sociais e em andamento implantadas pelos governos do Partido dos Trabalhadores (2003-2015), além de esfacelar a liderança internacional que o Brasil vinha construindo junto ao BRICS e à Unasul, para voltar a ajoelhar-se diante dos EUA.
O governo federal do capitão Bolsonaro conta com a presença massiva de militares – calcula-se algo em torno de 11 mil – em todos os escalões, desde a ANVISA com o almirante Antônio Barras Torres, até o ministro da Casa Civil, general Walter Braga Netto. Um governo amplamente militarizado. Resultado: preço da gasolina custando R$5,20; preço do botijão de gás de 13 kg chegando a R$105,00; preço do arroz R$6,50 (kg); 900 ml de óleo de soja valendo R$10,00; preço de 1kg de carne disparando para R$45,00; taxa oficial de desemprego é 15%; 240 mil pessoas mortas por covid-19; inflação de 2020 medida pelo IGPM 23,14%.
No livro de Villas Bôas, há ainda dois outros trechos não menos deploráveis. Primeiramente, segundo ele, não houve pedido de desculpas das Forças Armadas pelos crimes cometidos na ditadura militar de 1964 por medo de punição na Justiça. Em segundo lugar, o general revela a consulta de Michel Temer sobre o processo de impeachment de Dilma Rousseff, garantindo o aval das Forças Armadas ao Golpe jurídico-parlamentar de 2016, chegando a indicar o ministro-chefe do gabinete de Segurança Institucional de Temer, o general Sergio Etchegoyen.
Ao final, Villa Bôas apresenta, de forma lapidar, sua base conceitual obscurantista: “Quanto mais há igualdade de gênero, mais cresce o feminicídio; quando mais se combate a discriminação racial, mais ela se intensifica; quanto maior se desenvolve uma ética ambientalista, mais se agride o meio ambiente”. Só faltou, como bom bolsonarista, arrematar que a culpa do desmatamento na Amazônia é da árvore.
Portanto, de um lado tem-se Moro (codinome Russo) e Dallagnol (vulgo Deltinha) com seu bando de hienas devoradoras do Estado de Direito brasileiro; do outro, Villas Bôas e seus amigos ameaçando os ministros do STF. Aos poucos a história do Golpe vai sendo confirmada. Aguardemos os novos capítulos.