Palestra proferida no Ciclo de Debates integrante do programa de comemorações do centenário de nascimento do pintor, historiador e crítico Estrigas. A palestra ocorreu às 15 horas do dia 27 de setembro de 2019, no auditório do Porto Iracema das Artes, em Fortaleza.
A crítica de arte de Estrigas
Auto Filho
Já que este ciclo de debates se insere no calendário de comemorações culturais do Estado do Ceará, permitam-me iniciar minha intervenção lembrando um nome esquecido nas reverências do mês de setembro. E não é um nome qualquer. Dele disse Estrigas, o nosso reverenciado deste colóquio: “Era seu destino, ajudado por sua cultura, ser mesmo a figura central de todo o movimento que renovou nossa arte a partir de 1941”1. Esse nome esquecido hoje por nós, mas não por Estrigas, que organizou, junto com Gilmar de Carvalho, uma pequena, mas notável, antologia de seus textos, é Mário Baratta, falecido em 12 de setembro de 1983. Como Baratta nasceu no dia 12 de dezembro de 1914, em Vila Isabel, Rio de Janeiro, mas se tornou um dos mais genuínos artistas cearenses (“Possivelmente o pintor mais revolucionário da época”, disse ainda Estrigas), talvez possamos corrigir essa injustiça ainda este ano, organizando um evento à altura de sua contribuição à arte cearense contemporânea para marcar a data do seu nascimento.
Estrigas, o nosso homenageado de hoje, foi grande pintor, o mais importante historiador de nossa cultura artística (publicando mais de 20 livros) e o mais longevo crítico de arte do Brasil, militando no setor por mais de 50 anos e superando em tempo de atividade crítica até Mário Pedrosa (que escreveu sobre arte durante 48 anos) e Sérgio Milliet, crítico paulista, que atuou durante 28 anos.
Pelas normas de condução deste Ciclo de Debates, normas aprovadas por todos nós, terei apenas 20 minutos para apreciar a atividade de crítica de Estrigas. Como sua tarefa de crítica está dialeticamente relacionada com sua atuação de historiador das artes, fica evidente a impossibilidade temporal de tratar o assunto em toda sua larga abrangência e complexidade.
Proponho-me, em conseqüência disso, apenas a traçar algumas linhas fundamentais da crítica de arte feita por Estrigas ao longo de mais meio século. Minha intervenção neste evento só se tornou possível porque o historiador Régis Lopes, professor do Curso de História da UFC, organizou uma magnífica antologia na qual reúne grande parte dos artigos sobre arte publicados por ele, Estrigas, em diversos jornais locais, ao longo desse período. Trata-se do livro Artecrítica, editado pela Secretaria da Cultura do Estado do Ceará em 2009.
O fio condutor da crítica de arte de Estrigas foi a preocupação sistemática em criar, nesta província do fim do mundo, um espaço público de exercício da crítica de arte. Noutras plagas, como em São Paulo, Mário de Andrade e Sérgio Milliet fizeram o mesmo esforço. E Mário Pedrosa, o maior dos nossos críticos de arte e um dos mais dotados intelectualmente do mundo, realizou a façanha para o conjunto da cultura artística do país.
A criação de um espaço público de crítica é uma das primeiras condições de possibilidade de criação de uma cultura artística capaz de cumprir o programa estético de Schiller (1759-1805) poeta, dramaturgo e crítico alemão, cujo propósito era associar o destino da arte a uma espécie de educação estética da humanidade2, consubstanciada na reforma da sensibilidade e da percepção, que são bloqueadas pela reificação das relações humanas na sociedade capitalista.
Num esforço de síntese é possível identificar os traços principais desse revolucionário programa de política cultural das artes de Estrigas nos seguintes pontos:
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Realizar a análise histórico-crítica das condições infra-estruturais (isto é, econômico-sociais e institucionais) para o desenvolvimento artístico da sociedade cearense.
Eis um exemplo desse tipo de análise, feita em 23 de maio de 1966: No Ceará, meio pobre, o organismo socioeconômico não dispõe de maiores recursos para atender às necessidades artísticas e nem faz esforço para chegar ao início desse necessário atendimento. É conseqüência do subdesenvolvimento./ Esse organismo socioeconômico impotente particulariza-se na vida individual do artista, forçando-o a buscar outro meio onde consiga fixar-se em suas atividades artísticas ou outros meios de atividades para sua sobrevivência, pois, no primeiro caso, não encontra o suficiente para seu aproveitamento e desenvolvimento artístico e, no segundo, por não se constituir o meio necessário ao seu sustento e satisfação de suas necessidades como ser social.
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Fazer a leitura antropológica do público consumidor das artes, com destaque para a incivilidade e a incultura das elites econômicas e políticas dominantes.
No mesmo artigo anteriormente citado, ele afirma a respeito do público consumidor de arte: Sabe-se que muita gente compra quadros em nossa capital, mas quase sempre adquire o inferior ou falso, visto não ter cultura nem bom gosto.
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Promover a crítica das políticas públicas de cultura, em particular das políticas públicas para as artes visuais, denunciando com dureza os seus erros, omissões e lacunas e revelando, quase sempre com áspera ironia, a falta de capacidade intelectual e, às vezes, até de estofo ético das pessoas nomeadas para o exercício das funções de gestão dos órgãos públicos da cultura.
Sobre este ponto Estrigas escreveu vários artigos, especialmente alguns sobre a estátua de Iracema existente na Avenida Beira Mar. São artigos cheios de humor e fina ironia que precisam ser lidos para que se possa apreciar a argúcia analítica e a fina ironia machadiana de que Estrigas era dotado, qualidades que se combinavam, em alguns casos, com um forte tom iracundo, como este publicado em 22 de outubro de 1965: Quando soubemos que se pretendia erguer um monumento à Iracema, sugerimos daqui que se estabelecesse um concurso para escolha do melhor trabalho. Mas o mal já estava feito! As nossas autoridades são tão ignorantes em matéria de arte que não sabem nem para que lado devem voltar-se e, geralmente, voltam-se para o lado errado.
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Registrar a evolução regressiva do jornalismo cearense no tocante ao tratamento dispensado à cultura artística local, apontando pioneiramente o ingresso acrítico de nosso jornalismo na esfera da indústria cultural capitalista.
Aqui também Estrigas escreveu lúcidas e pioneiras avaliações. Cito apenas esta, de um artigo de 4 de setembro de 1960: Quanto à falta de cobertura jornalística, a responsável, em maior dosagem, é nossa própria imprensa, que não tem secções especializadas e, quando as têm, são feitas por leigos que de arte pouco sabem e nem se interessam, a não ser dizer qualquer coisa para fazer jus ao que ganham.
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Acompanhar, com sentimento compreensivo, mas com criterioso espírito crítico o variado movimento de produção artística, desde as exposições de arte por crianças e adolescentes, passando pela produção dos novos artistas e chegando aos consagrados oriundos da SCAP.
Aqui se revela em toda sua plenitude o método de análise do crítico, que tenho denominado método histórico-dialético, mas que o tempo disponível para minha fala não permite abordá-lo integralmente, coisa que já fiz em outro lugar. Quero destacar aqui apenas um aspecto que o faz distinto de todos os comentaristas anteriores e contemporâneos, com a exceção de Mário Baratta, quando exerceu o ofício de crítico por algum tempo. Estrigas foi, talvez, o único dos nossos críticos que fez o que Mário Pedrosa lecionou em jornais e revistas do eixo Rio-São Paulo. Retomando a interpretação do historiador José D’Assunção Barros sobre Pedrosa3, eu diria que Estrigas combina dialeticamente, em seu discurso, a especialização (isto é, o conhecimento técnico do ofício de artista visual) com a atenção generalizante do historiador e teórico da estética. Como Pedrosa, Estrigas chega a atingir, em alguns casos, como na análise das obras de Zenon Barreto, Floriano Teixeira, Sérgio Lima, Roberto Galvão e Descartes, entre outros, a dimensão da análise pericial. Faz isso, no entanto, sem perder a atenção “enfaticamente voltada para as implicações universalizantes da arte e da cultura”3, para citar José D’Assunção Barros. Veja-se apenas uma amostra, a respeito de uma exposição do Descartes enfocando a dimensão religioso-social da cidade de Canindé, um dos centros de romaria do Ceará: Descartes faz uma pintura de temática religioso-social e não uma pintura religiosa ou de sentimento religioso. Ele sabe captar e refletir a expressão das mazelas sociais e humanas que sensibilizam e revoltam, não atingindo, porém, o embevecimento contemplativo do espírito e fervor religiosos que refletem o sentimento de pureza e bondade ainda não destruído pelo homem.
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Militar insistentemente pela organização institucional dos artistas em torno de uma política cultural autônoma para a corporação que tivesse não só objetivos de representação profissional, mas que cuidasse com o devido denodo da formação intelectual e estética dos seus integrantes.
Suas reflexões a respeito deste tema perpassam muitos dos seus artigos ao longo do período em que exerceu a crítica de arte. Após lamentar, em determinado texto de 1966, que os artistas cearenses vivem muito isolados, sem contato com os meios mais avançados e, além disso, sofriam da ausência de locais, material, oficinas e ambiente comum de trabalho, resolve fazer diversas sugestões de como encaminhar a solução do problema, como a criação de escolas superiores de arte, a formulação de uma política pública de criação e manutenção da arte em locais públicos e privados e da aquisição de obras para pinacotecas e museus. Quanto a este último aspecto – a criação de espaços públicos permanentes de exposição para artistas locais -, Estrigas propôs, em artigo publicado em 2 de julho de 1985, a criação de uma pinacoteca onde fôssemos acumulando, por aquisição, os trabalhos mais representativos da arte cearense, formando o conjunto visual de sua história.
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Enveredar pela seara da sociologia da criação artística na cidade de Fortaleza, descobrindo, já entre as décadas de oitenta e noventa do século passado, o surgimento de artistas na periferia da cidade
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Os jovens artistas não são mais apenas rebentos das classes médias bem nutridas que residem no Centro da cidade. A periferia, espaço geossocial do proletariado e até do lupenproletariado, mostra sua cara artística. O fenômeno impressionou tanto ao nosso homenageado que ele chegou a escrever um artigo inteiro (Arte x periferia, datado de 26 de junho de 1991) onde diz: Se a Aldeota é hoje o centro financeiro da aquisição artística e local concentrador do comércio de arte, a periferia é o centro fornecedor do elemento humano que vai, entre outros, produzir o objeto para esse centro.
Antes de finalizar esta minha breve intervenção, vale ressaltar ainda duas coisas. Primeira: Estrigas é um divisor de águas na história da crítica de arte no Ceará. Antes dele, o comentário jornalístico sobre arte era apanágio de literatos. Aluísio Medeiros, Antônio Girão Barroso, Braga Montenegro e Eduardo Campos, entre outros poetas e ficcionistas, faziam a divulgação e escreviam crônicas impressionistas sobre as exposições de arte em Fortaleza. Se excetuarmos os casos dos pintores Mário Baratta e Barboza Leite (este último, inclusive, escreveu um pequeno livro sobre história da arte cearense, intitulado Esquema da pintura no Ceará, publicado em 1949), só Estrigas se dedicou ao longo de mais de 50 anos ao exercício da crítica de arte, superando o impressionismo dominante e fundando o ofício em sólidas bases científicas.
(Aqui cabe um parêntesis para destacar o papel de crítico e historiador da arte do pintor Roberto Galvão, que manteve, por algum tempo, uma coluna sobre arte no jornal O Povo, onde deu ênfase à relação entre arte e mercado, e escreveu depois, sob orientação do professor Almir Leal de Oliveira, uma dissertação de mestrado de história social, intitulada A escola invisível – artes plásticas em Fortaleza 1928-1958, defendida junto ao Curso de História da UFC e publicada em Fortaleza pela editora QuadriColor em 2008. Pelo enfoque sociológico dado aos seus artigos no jornal O Povo e pelo caráter polêmico da dissertação, que pretende apresentar uma interpretação alternativa à interpretação de Estrigas, mas, a meu ver, apresenta vários problemas de fundamento teórico e interpretação dos fatos, não é possível fazer, neste momento, um juízo de valor conclusivo a respeito de seu trabalho. Mesmo assim, considero que a contribuição de Roberto Galvão está a merecer um estudo de grande envergadura, estudo que, até onde sei, ainda não foi feito, infelizmente).
Em segundo lugar, Estrigas, embora tenha causado profunda influência no desenvolvimento artístico de nossa terra, tornando o Minimuseu Firmeza, de Mondubim, um verdadeiro oráculo para artistas e outras almas perdidas, não foi – e nunca quis ser – um líder de movimento, mesmo tendo sido presidente da SCAP – Sociedade Cearense de Artes Plásticas, a entidade que reuniu os mais importantes artistas plásticos cearenses. O próprio Estrigas sempre reconheceu que o líder da renovação artística local foi Mário Baratta, dedicando a ele um livro inteiro4, feito juntamente com Gilmar de Carvalho, que traz precisamente este subtítulo Mário Baratta: o líder da renovação, livro publicado em 2004.
Como velho professor de filosofia, não poderia concluir meu discurso sem dizer uma palavra sobre o sentido metafísico do trabalho intelectual de Estrigas como pintor, historiador e crítico. “Criar – dizia o escritor Romain Rolland – é matar a morte”. Sempre houve em Estrigas esse criminoso sentimento. Não contente com o papel de moderno criador na pintura e na crítica de arte, ele resolveu capturar a eternidade, criando um museu e escrevendo a história do que há de mais significativo na arte cearense. Por isso mesmo, seu melhor retrato, aquele que todos nós – seus amigos e admiradores – vamos guardar para sempre, pode ser traçado com estes reveladores versos de Carlos Drummond de Andrade:
E como ficou chato ser moderno,
Agora seu eterno.
Notas
1. Todas as citações dos textos de Estrigas foram extraídas do livro Artecrítica, organizado e prefaciado por Régis Lopes. O livro foi publicado em 2009 pela Secretaria da Cultura do Estado do Ceará.
2. Conferir em Educação estética do homem numa série de cartas, de J. C. F. Schiller, São Paulo: Iluminuras, 1995.
3. O belo ensaio de José D’Assunção Barros, intitulado Mário Pedrosa e a crítica de arte no Brasil, de onde foi extraída a citação, foi publicado pela ARS – revista do programa de pós-graduação em artes visuais, ano 6, nº 11, da Escola de Comunicação e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo, editada em 2008.
4. O título completo do livro é ARTE CEARÁ – Mário Baratta: o líder da renovação, publicado pelo Museu do Ceará em 2004. Além de um prefácio de Gilmar de Carvalho e de uma introdução e uma conclusão de Estrigas, a obra traz uma antologia de artigos de Baratta publicados na imprensa local, um texto sobre ele escrito por Aluísio Medeiros e uma entrevista concedida ao jornalista Walter Gomes.