A criação de um novo mundo – CLAUDER ARCANJO

Fim de quarentena. Quarta-feira. Licânia amanhecia com a festa do passaredo, e com mais um soturno badalar do sino da Matriz de Sant’Anna.

Levantei os olhos da leitura de Angústia, de Graciliano Ramos, a pensar:

— Meu Deus, mais uma vítima da peste!

Licânia sofria, e eu recolhido, a ler e reler meus livros, como se tanto sofrimento não me tocasse a alma.

Com pouco, a voz militar de Aristides:

— Clauder Arcanjo?! Ponha a sua máscara, a porta está aberta. Você cumpriu com suas obrigações de cidadão, sinta-se agora livre.

Nem me aproximei do café servido sobre a mesa da cozinha, devido à ânsia de juntar-me, o mais depressa possível, ao grupo do Companheiro Acácio.

Ao pôr os pés na rua Mateus Mendes, levei o olhar para a herma do Poeta Padre Antônio Tomás. A praça vazia, entregue a um silêncio opressor.

Rumei, então, para o Mercado Público. Lá, com certeza, se concentraria o quartel central de combate ao coronavírus em Licânia.

Frente ao portão de entrada, estranhei. Tudo vazio. Nada de feirantes, as bodegas todas fechadas, o comércio inteiro de portas cerradas.

Dei a volta no quarteirão, a matutar:

“Vou ao bar do Edir. Ali colherei novidades!”

Ao dobrar a esquina do comércio do Antônio Horácio, percebi que também o boteco do Edir se encontrava sem ninguém. “Onde estarão todos?”

Quando caminhava para a Pensão do Raul, alguém me chamou:

— Clauder Arcanjo?

— Quem me chama?

— Sou eu, o Batista do Zé Aguiar.

Voltei-me, mas ninguém localizei.

— Aqui, aqui. Psiu!

Ele se escondia por detrás de um poste, em vestes mínimas. Na verdade, quase nu. Portava apenas uma toalha de rosto frente aos bagos.

— Que arrumação é essa, rapaz?! Componha-se, isso são modos?

— Não me restou outra saída, meu amigo. Recolheram-me dias atrás; fiquei trancado nu no meu quarto, numa típica prisão domiciliar. Em seguida, esconderam todas as minhas roupas, alegando que, assim, evitavam que eu ganhasse a rua e fosse contaminado pelo tal vírus chinês — defendeu-se, com os olhos esbugalhados. A voz tonitruante, o cenho espantado, sempre a verificar, desconfiado, se alguém nos observava.

Dirigi-me ao seu encontro, e fiz menção de lhe ofertar o meu blusão jeans. Ele, de imediato, interrompeu o meu gesto:

— Não precisa disso. Estou bem. Quero apenas lhe confidenciar algo: a questão não é só a medicina, filho do seu Zequinha. Tolo aquele que pensa que estamos diante de uma simples peste. A coisa é ligada aos… alienígenas.

— Alienígenas, Batista? Qual a cachaça que você andou bebendo, rapaz? — interrompi-o.

— Estou mais sóbrio do que o Santo Papa, Arcanjo. Acredite. Continuando, na madrugada passada eu captei mensagens em ondas marcianas a cruzarem o céu licaniense. E estou assustado com o que pude decifrar: vários dos nossos já foram abduzidos, os corpos ainda andam por aqui, no entanto todos eles a serviço de um império intergaláctico…

Quando ia lhe dando as costas, seguindo meu caminho para o pensionato do Raul, uma trombeta cortou os ares da província.

— São eles, são eles. Fingem-se de militares comprometidos com o nosso bem-estar, quando, na verdade, são uns…

Interrompeu seu discurso ao perceber a aproximação de um grupo em marcha acelerada. Depressa Batista sumiu por entre o beco do Mercado.

— Um, dois, um, dois… Pelotão, alto!

Tratava-se de uns vinte jovens capitaneados pelo Paulo Bodô. Este abordou-me:

— Senhor Clauder Arcanjo! Por ordem expressa do Comandante-Maior do Estado Licaniense de Exceção de Combate ao Covid-19, o General Acácio, peço que se apresente, de imediato, ao nosso quartel-general, situado no logradouro Caneco Amassado — disparou Paulo Bodô, com os olhos de encantado milico.

Identifiquei no seu peito de pombo a insígnia de Capitão da Scotland Yard de Licânia (SYL).

Quis rir — o quartel-general montado no cabaré da cidade! —, porém me contive:

— Sim, Capitão Paulo Bodô, logo vou me juntar ao nobilíssimo comandante. Primeiramente passarei na residência do seu Raul, a fim de pagar um débito antigo. Mas de lá seguirei, em passo acelerado, para o Caneco Amassado. Recomendações minhas ao General Acácio, companheiro de moral ilibada e de ética impoluta — argumentei.

Não sei se devido ao meu ar decidido, ou se por empregar vocábulos indecifráveis para os coturnos limitados do Bodô, ele mais nada argumentou. Apenas me fez sinal de continência, enquanto gritava, a plenos pulmões:

— Morte ao coronavírus! Pelotão, em marcha!

E saíram pelas ruas vazias como uns autômatos.

“Como seres abduzidos?” Mal essa pergunta-ideia assomou ao meu pensamento, espantei-a com meu protesto cristiano:

— Deus e Senhora Sant’Anna não permitiriam!

Entrei na Pensão de Raul. Vazia, tudo entregue às moscas. Melhor, havia apenas uma “pessoa”: Nabuco.

O bichano se encontrava no fundo de uma rede suja, febril e a miar coisas sem sentido.

— Mi… mia… miau… Oh, mi… miau…

Como aproveitara o meu período de isolamento para aprender a libra dos gatos, assim como a me expressar na língua felina, interroguei-o:

— Você foi contaminado, Nabuco?! E o que está me dizendo, Nabuco?! Eles, eles quem?

Mi… mia… miau… Oh, mi…

— Oh, não!… Eles estão, com a tal peste, a tentarem criar um novo mundo?! De onde tirou essa ideia? Você andou conversando com o Batista do Zé Aguiar, Nabuco?

Ouvi passos atrás de mim, tentei me voltar, mas…

Uma cacetada me jogou ao chão, e eu fiquei a ouvir estrelas.

— Mi… miaiau… Oh, mimiau…

Clauder Arcanjo

Clauder Arcanjo é escritor, membro da Academia de Letras do Brasil. Autor das obras Licânia, Novenário de espinhos, Uma garça no asfalto, Cambono, O Fantasma de Licânia, entre outras.

Mais do autor

Clauder Arcanjo

Clauder Arcanjo é escritor, membro da Academia de Letras do Brasil. Autor das obras Licânia, Novenário de espinhos, Uma garça no asfalto, Cambono, O Fantasma de Licânia, entre outras.