As organizações sociais de esquerda no Brasil, desde 2013, vêm perdendo, para a extrema direita fascista, o seu protagonismo político e o espaço das ruas como seu lugar de maior visibilidade política e demonstração de força. Ao longo de uma década, a esquerda vem demonstrando fragilidade na sua capacidade de mobilização: não foi capaz de barrar o golpe sobre o governo Dilma em 2016; não foi capaz de encerrar o governo Temer diante dos escândalos em torno do seu nome e do seu envolvimento no caso JBS; não teve poder de mobilização contra as reformas trabalhistas e previdenciárias, nem contra a PEC da morte, nem contra a prisão de Lula, e ficou assistindo de forma aturdida e com medo os quatro anos de governo Bolsonaro. Por outro lado, a extrema direita, no que pesem ter perdido as eleições presidenciais em 2022 e Bolsonaro ter sido declarado inelegível, encontra-se em pleno crescimento em todos os segmentos sociais e regiões do país e vem dando demonstração de força nas ruas, preparando-se para uma bem-sucedida guerra de posição em torno das eleições municipais de 2024.
Em parte, o sucesso da extrema esquerda se alimenta do desencanto da sociedade com o lulismo, que enfrenta um duplo esgotamento: inviabilizou-se como via conservadora de gestão da ordem (Lula não é mais o cara) e, do ponto de vista da sociedade, dos de baixo, perdeu a legitimidade que teve como alternativa de garantia de direitos e transformação social. Esse duplo esgotamento foi expresso nas eleições de 2022, no sentimento de camadas expressivas do eleitorado de que qualquer coisa era melhor do que a reeleição de Bolsonaro.
O terceiro governo Lula (2023 – 2026) não tem demonstrado possuir uma estratégia de ação política de reorganização do campo das esquerdas ou até mesmo anti-bolsonarista, não tem uma política de comunicação com o povo e a sociedade civil, seu campo de ação prioritário é o mesmo que contribuiu para a desmobilização da sociedade nos seus primeiros dois mandatos, são os acordos institucionais de um governo da ordem capitalista (distribuição de cargos e de posição de liderança política no Congresso Nacional para políticos do centrão e bolsonaristas, distribuição de ministérios estratégicos para o desenvolvimento ao centrão, emendas do orçamento em troca de votação, renúncia fiscal para setores lucrativos do mercado), e de participação institucional em conselhos que se constitui num conjunto de técnicas que desmobiliza mobilizando e esvazia o viés classista do ativismo social, agora numa conjuntura política demasiadamente diferente e desvantajosa em relação à dos seus dois primeiros mandatos, e diante de um Congresso chantagista que lhe pôs na condição de refém e lhe causa constrangimentos, como constantes derrubadas de vetos presidenciais. Lula sempre foi um presidente conservador, nunca realizou reformas estruturais, sempre foi um governo da ordem. Seu terceiro mandato é um mandato sem criatividade e sem novidades, em relação aos seus dois primeiros, é o menos do mesmo.
O bolsonarismo está vivo e forte na tessitura social do país, nas redes sociais, nos bate-papos que ocorrem durante as corridas de úberes, no seio das famílias, nas mesas de bares, em nossas salas de aula, em todas as conversas cotidianas e nas instituições. Para Erico Firmo, colunista do jornal O povo em Fortaleza, o ex-presidente Bolsonaro (PL) é mais forte do que a esquerda e do que o lulismo. A vitória de Lula em 2022 foi resultado da aglutinação de forças muito além da esquerda. Durante o segundo turno, a adesão de parte do mercado e do setor financeiro, assustado com a possibilidade de concretização do golpe, foi fundamental para agregar um sentimento anti-bolsonarista em torno da candidatura de Lula.
O professor da USP e ativista político Vladimir Safatle afirmou numa entrevista ao jornal Folha de São Paulo, no final de fevereiro, que a extrema direita é a única força política real existente no país. E foi muito mais além ao dizer que somente a extrema direita tem capacidade de ruptura, estrutura, coesão ideológica e capacidade de mobilização. Nesse sentido, para ele, com a eleição de Lula em 2022 se ganhou tempo.
Como o presidente Lula se comporta como se tivesse sido eleito porque era a única opção, busca se projetar no cenário mundial como estadista e negocia com o centrão sua permanência no governo sem comprar nenhum conflito com a extrema direita, com os evangélicos e com o mercado. Lula prefere desapontar e frustrar os servidores públicos do que tais setores. Todavia, o mandato petista vai se encerrar em 2026 ou, pela somatória de confluências conjunturais favoráveis, em 2030. Então, uma questão precisa ser pensada: como se fará o enfrentamento da extrema direita sem liderança política, sem os segmentos de esquerda da sociedade civil organizados e mobilizados e sem projeto político para o país? Lula ainda catalisa os setores de esquerda e tem a simpatia de camadas isoladas da sociedade que portam uma visão crítica do mundo, e que são anti-bolsonaristas, mais do que pelo petismo ou pelo modo de fazer política de Lula. Todavia, tal situação pode não durar por muito tempo, eles podem deixar de esperar algo do lulismo e do petismo para assegurar o que não querem perder.
Para Vladimir Safatle, a esquerda envelheceu em ideias, leituras da sociedade e em militância. Sua afirmação forte e contundente pode até ser passível de mediações, mas tem uma carga de percepção empírica considerável e devemos levar em consideração e, assim, enfrentar o desafio de pensar mais profundamente a nossa realidade política, econômica, religiosa e cultural em busca de saídas, seja porque alimentamos a ideia de que outros mundos são possíveis ou mesmo se queremos apenas adiar o fim do mundo. Se é verdade que a esquerda envelheceu, não significa que morreu, ou ela pode ter uma longa vida sem vitalidade para reagir diante da constituição da hegemonia de um novo bloco de poder a conduzir o país numa ordem incerta que pode nos levar à barbárie, ou se repensar e se renovar afirmando um horizonte emancipatório que Enrique Dussel chama de transmoderno e pluriversal.
SOBRE A GREVE NAS UNIVERSIDADES FEDERAIS EM 2024
Karl Marx afirmou com muita convicção que o proletariado estaria disposto a fazer a revolução porque, fora a cadeia, não tinha nada a perder. O fato é que mesmo não tendo nada a perder o proletariado até hoje não fez a revolução, não se transformou em classe para si, e muitos acabaram na prisão. E nós, professores universitários, entrando no segundo quarto do século XXI, o que temos a perder ou o que temos a esperar da atual conjuntura política e do terceiro mandato do governo Lula? Temos mais a perder ou a esperar? Se não temos mais nada a esperar o que temos a perder? Se não queremos perder e nem esperar, um dos caminhos que nos resta é o da mobilização e da luta; é construir o que queremos e o que esperamos com a nossa luta, fazendo nossos próprios caminhos.
O 42º Congresso do ANDES aprovou a preparação da greve dos professores das Universidades Federais para o primeiro semestre de 2024, os argumentos para sua realização não foram classistas, mas economicistas: é por reposição das perdas salariais acumuladas ao longo de seis anos, desde o final do governo Dilma até o final do governo Bolsonaro. Portanto, a nossa pauta além de não ser classista é rala, não reivindica ganho real de salários, nem o fim do financiamento público de universidades privadas por meio de compra de vagas, nem mudanças estruturais do sistema de ensino público e nem o fim da política neoliberal orientada para os interesses do mercado; embora todos esses pontos possam apareçam nos discursos durante a greve. Para alguns, a delicadeza da conjuntura política do país justifica a agenda limitada. Todavia, o tom de crítica à agenda economicista não significa o desconhecimento da sua importância para a categoria e para o fortalecimento da mobilização sindical.
A greve foi aprovada com certo sentimento de frustração sobre o que a categoria esperava do governo Lula, a saber, que ao longo de todo seu mandato fossem repostos os quase 40% de perdas acumuladas, não era ganho de salário e nem reestruturação da carreira. A abertura da Mesa Nacional Permanente de Negociação, no início de 2023, deu uma grande animada na categoria, mas a reposição de apenas 9% em 2023 provocou um ligeiro descontentamento, mas foi considerada uma pequena vitória face ao fato de que o governo administraria um orçamento deixado por Bolsonaro. A Mesa de Negociações é uma das estratégias do lulismo de desmobilizar mobilizando. É bem possível que possamos identificar um conjunto de lideranças sindicais com mais tempo de perambulação pelos corredores do Congresso nacional e de ministérios em Brasília do que em passeatas. Talvez, possamos encontrar nessa estratégia dos governos petistas, para além da pandemia, parte da resposta porque durante todo governo Bolsonaro não houve mobilizações e nem greves, a luta institucional tinha perdido o seu espaço.
O sentimento de frustração voltou a tomar conta da categoria e da esperança de uma esquerda mais crítica quando foi anunciado pelo governo e aprovado o Arcabouço Fiscal, que em suas nuanças dificulta a reestruturação de carreira e torna vulnerável o processo de reposição salarial dos servidores públicos. Em segundo lugar, mais assustador, o orçamento para 2024 não previa dotação orçamentária para aumento dos salários dos servidores públicos, em seguida o governo anunciou como meta fiscal para 2024 zerar o déficit fiscal, o que significava uma grande possibilidade de não aumento de salários para os servidores. E, por fim, o quarto e mais duro dos anúncios do governo para a categoria foi a confirmação de que não teria aumento em 2024 e que os anos de 2025 e 2026 o aumento seria de 4,5%, respectivamente, e um aumento, a partir de 1º de maio, do auxilio alimentação, indo de 658 reais para mil reais. A categoria apresentou uma contraproposta de reposição de 21,71% dividida em três parcelas de 7,23% durante os anos de 2024, 2025 e 2026, mas foi rejeitada pelo governo. Portanto, o governo Lula não escondeu a sua desfaçatez em tratar com desprezo os servidores públicos e o seu interesse em neutralizar as mobilizações dos servidores até o final de seu mandato ao antecipar qual seria o aumento para 2025 e 2026.
A preparação da greve e a sua efetivação será uma grande oportunidade para que possamos ter uma dimensão dos sentimentos que prevalecem na categoria. Será que nossa categoria se sente desvalorizada, sente que seu poder de compra está depreciado e lhe impondo uma baixa na sua qualidade de vida? Será que ela já não espera nada e acha que uma greve interromperá suas disciplinas e afetará seus interesses individuais se tiver que repor as aulas? Será que ela está muito decepcionada, endividada e vai aderir com vontade e/ou apoiar suas lideranças pela conquista de reajuste salarial para 2024 e um percentual mais digno de reposição para os anos seguintes? E qual será o papel dos docentes comprometidos com as lutas da categoria e das lideranças e seções sindicais na condução da greve? Como partir de uma pauta economicista e ampliar para uma pauta mais ampla e que permita a ampliação e o fortalecimento da organização da categoria? Todas essas perguntas são inquietações que compartilho como forma de preparação para nosso movimento grevista, pois se não há nada a esperar do governo, temos muitos direitos a exigir que ele cumpra e devemos, ao mesmo tempo, ser cuidadosos para evitar retrocessos políticos no nosso país.