Enquanto as sianinhas da saia de Zefa disputavam rodoró com o brilho incandescente das chuvinhas, o vento soprava na nossa cara, as faíscas da fogueira e o perfume Toque de Amor que Tica usara para “enfeitiçar” o marido, recém chegado de Rondônia.
Esta madrugada acordei de um sonho bom, eu estava em um lugar em tempos distante daqui. Era dia de festa e noite de São João. Zefa era uma moça bonita que ajudava lá em casa. Éramos pequenininhos e ainda não conhecíamos nenhuma televisão. Tudo que sabíamos vinha das cartilhas de ABC do ofício de mainha, do rádio de pilha e das lições que a natureza ensinava todo dia.
As fogueiras e suas tradições, e assim por dizer, os hábitos e a educação dessa espécie, ainda não haviam sido corrompidos pelo capital.
Logo cedinho, papai fez um rastelo com pregos, caibro e martelo, limpou as folhas úmidas embaixo dos pés de caju e prendeu uma tábua nas cordas, amarrou-as nos galhos e fez um balançador.
– Hoje ninguém vai pra roça, hoje é só mangaio e festa.
Para a alegria dos sete filhos, que não cabiam em si de tanta felicidade… Mãe fazendo pão de ló na cozinha, batendo ovos de capoeira com um garfo e prato de porcelana branca, o cheiro de cravo e canela pisados no pilão e Zefa correndo atrás de nós no terreiro para dar banho e catar se tinha algum piolho na cabeça… Ah, isso não, isso ela não admitia. Era asseada demais. Moça bonita de cintura, cor morena e “boa altura”, os dentes certinhos e brancos e os dois da frente eram separados como os da cantora Madonna.
– Dona Toinha, eu vou banhar os mininos logo cedo, porque quando João Taverna chegar eu quero sossego.
Além do namorado de Zefa, aquela noite iam passar as fogueiras lá em casa, Tica e o marido, casal compadre de meus pais e o dono da fazenda com os filhos, alunos de minha mãe.
Eu sempre escutei na família que papai era um “artilheiro” cheio de inteligência e gaiatice. Guardou no aparador da cozinha um molho de chuvinhas, bombinhas e, meu Deus… parece que foi ontem, ainda tinha outra surpresa.
Intenso demais pra um só pai, queria que vivêssemos o auge em um único dia.
Na boquinha da noite, ele pegou um facho de lenha, com um capucho de algodão umedecido no gás de candeeiro e acendeu a estrela da noite, a fogueira. Logo chegou o primeiro convidado, o dono da fazenda, e se pôs abestalhado com o rastelo que papai tinha feito para limpar os cajueiros.
– Oxente, é uma “ciença”…
– O senhor acha? Pois vou lhe mostrar é uma mágica.
Papai buscou na cozinha uma lata de sardinha vazia, emborcou-a no chão e colocou embaixo uma bombinha acesa.
A bombinha chiou, explodiu e levou aos ares a latinha de sardinha vazia.
– O que é isso, cumpade?!!
– Se acalme, isso é só uma bomba chiando. Agora veja a beleza aqui nas suas mãos.
O efeito da explosão no flandres transformou a latinha numa linda tigelinha. E o fazendeiro admirado disse: “ora, eu vou comer é aqui. É uma “ciença”, é coisa de São João”.
– Tu viu, Leda? O homem é rico mas quem é sabido é papai.
– É, eu vi, papai sabe fazer ciência…
A lua branca, moradora do céu infinito, uma casa distante, cercada de pés de Juá, Angico, caju e Marmeleiro, o fogão de lenha cheio de comida cheirosa e iguarias de Santo Antônio, na dobra dessa história nenhum objeto era pobre.
Sentados na beirada do terreiro, sentíamos o cheiro da pinga com mel trazida por João Taverna. As faíscas laranja vibrante sopradas pelo vento em nossa direção, se misturavam com o perfume de Tica, que usara para encantar o marido recém chegado de Rondônia. Papai tocando vialês, espiava a nossa mãe com o rosto de paixão, enquanto as chuvinhas abriam lacunas carmins no meio da noite e disputavam com a ciranda de Zefa a beleza de nossa fogueira.
Naquele tempo, o trabalho não encolhia tanto a alma humana, mesmo com o corpo enfadado das roças de feijão, sobrava tempo para ser feliz. A gente nem sabia o que era amor, mas era possível senti-lo em todos os olhares em direção crescente e carregados de esperança.