Nem tudo se resumia ao Fantasma de Licânia, havia uma corrente de negacionistas que incentivava o uso indiscriminado da canaquina, como única estratégia de prevenção contra o vírus. Antes que fossem concluídos os estudos que transcorriam na Fazenda Eldorado, alcunhada de “O Butantan de Licânia”, um grupo de extremistas já pregava o seu uso, de forma ampla, geral e irrestrita.
Quando o nosso protofilósofo João Américo soube da artimanha pseudomedicinal, ele concluiu:
— Isso deve ser coisa de algum aproveitador cu de cana metido a cientista.
De pronto escalou o Companheiro Acácio para descobrir o quartel-general desses “celerados”:
— Acácio, largue Dante e cuide de desvendar essa diabólica comédia. Se eles se precipitarem no uso da canaquina, antes de realizarmos todas as etapas da pesquisa, no lugar da cura poderemos colher o desastre. Em nome da ciência e do bem comum, o futuro de Licânia está nas suas mãos!
Acácio quis argumentar, mas foi demovido pelo candente discurso de João Américo:
— Melhor, em sua mente de investigador provinciano. Use e abuse de todos os conhecimentos adquiridos por você no curso por correspondência do Instituto Universal Brasileiro (IUB). Mostre aos seus críticos que é realmente digno da alcunha de O Sherlock Holmes de Licânia, e que você não se trata de um impostor. Ao fim dessa investigação, salvam-se a ciência e o seu prestígio.
Aquelas palavras encheram o Companheiro da fúria do bom combate. Ele inchou o peito e, antes de sair, asseverou:
— Saibam todos: o Acácio Holmes voltou!
Companheiro montou no lombo da primeira jumenta selada que encontrou pela frente (tal conversa se dera no terreiro do Eldorado) e saiu com seu trote quixotesco no rumo da cidade.
Dona Maria Djanira logo rezou uma salve–rainha pela sorte dos licanienses. Seu Zequinha, ao canto, ponderava com João Américo se não seria o caso de antecipar a conclusão dos estudos da canaquina, que se davam na fazenda Eldorado. João Américo não quis conversa:
— Com a ciência não existem rodeios nem atalhos, caro Zequinha. Quando se serve à ciência admite-se tão somente o reinado das provas às teses levantadas. Cientista que se preza, amigo, não serve a nenhum deus de ocasião. Não se curva a nenhuma crendice, ou “teoria” imposta.
Horas depois, com as partes íntimas sofridas e em fogo, nosso investigador se aproximou dos limites de Licânia. Quis dispensar a jumentinha, batizada de Sancha no caminho, porém se estabelecera entre o muar e o Companheiro uma parceria que não acabaria tão fácil.
— Seguirei agora a pé, cara Sancha, preciso me aproximar com a máxima discrição, sozinho. Sua missão já foi cumprida, pelo que lhe sou eternamente grato —soprou-lhe Acácio, enquanto tentava tangê-la no rumo de volta.
Qual nada!, o animal permanecia ao seu lado. Nascia ali algo incomum, ou seja, uma singular dupla investigativa: Companheiro Acácio, o Sherlock Holmes de Licânia, e sua assistente, a jumentinha Sancha.
— Tudo bem, marchemos então. Mas nada de zurros, Sancha, a discrição é a maior arma do sucesso de uma boa dupla de detetives.
A jumentinha concordou, elevando e baixando a orelha direita.
Acácio seguiu, acompanhado de perto por Sancha.
No Caneco Amassado Acácio recebeu informações valiosas de onde se encontrava o grupo de canaquinicidas. Este neologismo, caro leitor, nasceu de um discurso inflamado da gestora do prostíbulo, aparteado por um zurro da valente assistente Sancha.
Acácio e Sancha deixaram a noite cair, e depois seguiram para o sítio indicado pelas servidoras do Caneco Amassado. Nas proximidades, os dois colheram os primeiros sinais de que estavam na pista certa: centenas de garrafas de aguardente e caixas de cloroquina vazias no entorno.
— Elementar, minha cara Sancha.
A jumentinha arregalou os olhos, postando-se de orelhas em pé na retaguarda de Acácio. Num misto de medo e expectativa.
Quando se aproximaram da parte de trás da velha casa, ouviram uma voz forte, em tom de palavreado messiânico:
— Minhas irmãs e meus irmãos, estamos aqui numa experiência humana singular. Com Deus e com a canaquina baniremos esse vírus.
— Amém! — respondiam-lhe.
Pela fresta da janela, Acácio percebeu que a mistura indicada pelos especialistas estava sendo adulterada: em vez de um litro de pinga para cinco comprimidos de cloroquina, aquele grupo colocava um comprimido em cada dez litros de aguardente. Bem como a prescrição: uma dose grande a cada meia hora.
Não precisou de muito tempo para perceber o objetivo primeiro daquela celebração. O orador conclamava a todos a esvaziarem seus bolsos, contribuindo regiamente para a “Cura de Deus”.
— Esta é uma santa ceia, a Ceia da Canaquina. É hora de nos desapegarmos da matéria e do vil dinheiro, só assim seremos dignos da vida em plenitude, saúde e harmonia.
Mulheres e homens, alcoolizados, limpavam suas carteiras e bolsos perante o púlpito. Enquanto novas doses da adulterada canaquina lhes eram servidas como o “vinho da cura”.
Acácio intrometeu-se, disfarçado entre a multidão, e arriscou todas as suas fichas quando, fingindo-se de crédulo, pediu:
— Minhas irmãs e meus irmãos em Cristo, sugiro, em louvação por nossa cura, nesta ceia memorável, rezarmos um terço. Aleluia!…
— Amém! Amém!… — bradaram os presentes.
— Que o nosso venerável orador reze o primeiro mistério! — emendou Acácio.
O dito-cujo nunca rezara uma ave-maria na vida, e cuidou de fugir pelos fundos, levando o saco de dinheiro recolhido em sua canaquinística pregação.
Quando saltou a janela dos fundos, o meliante foi recebido por um coice celestial de nossa jumentinha Sancha.
Dentro de casa, aturdidos, homens e mulheres deram-se conta do engodo. Antes que arrancassem o couro do pregador de araque, Acácio pediu-lhes que, junto com ele, prendessem os demais assistentes, aqueles que manipulavam o falso preparo.
Ainda na madrugada, cabo Jacinto Gamão recebeu a todos de portas abertas na cadeia pública. E, com todo o zelo, amansou o espírito daquela turma de usurpadores da boa–fé dos licanienses, prescrevendo um coice de Sancha e duas admoestações com o cacete de jucá no lombo dos impostores de hora em hora.
Antes que o sol surgisse, deu-se um milagre na cadeia de Licânia. Todos clamavam por Cristo:
— Valei-nos, nosso Senhor Jesus Cristo!
— Para sempre seja louvado! — aparteava-os cabo Jacinto, após mais duas bordoadas e um coice educativos.
Pouco depois Licânia despertava sob a luz de uma alvorada festiva. Ao som do passaredo e da bênção dos sinos da Matriz de Sant’Anna.
— Acácio Holmes voltou!
*Escritor e editor, autor dos livros O Fantasma de Licânia, Mulheres Fantásticas, entre outros.
clauderarcanjo@gmail.com