A ARTE DE CONTAR HISTÓRIAS DE VIDA

Rinaldo de Fernandes de há muito vivencia a literatura como parte da sua existência. Suas primeiras publicações remontam da década de 80, do Século XX, quando era estudante de Letras da Universidade Federal do Ceará. Na época, por volta de 1985, fundávamos a Revista Acauã, com o saudoso poeta Sandoval Teixeira. Éramos três infantes na arte de poetar e contar histórias, mas deixávamos uma marca indelével na literatura cearense de então, repleta de escritores renomados, de projeção internacional, cravando a máxima dita em tantos textos pelo historiador e crítico Sanzio de Azevedo, nosso professor. O Ceará não para e não cansa de produzir.

Esses dados são fundamentais para que se atribua a Rinaldo de Fernandes uma organicidade com que tratava seus textos, sob influência clara de Moreira Campos, nosso expoente do conto. Dentre alguns gêneros que avivou sua pena, Rinaldo escolheu a ficção (conto e romance) para trilhar os caminhos da arte literária. Como contista, logo no seu primeiro livro, O caçador, percebemos uma artesania superior e uma preocupação com a palavra, como se investida de uma sentença para a qual a mobilidade das imagens se cercasse de significantes imediatos, como se fossem uma armadilha para prender o leitor, na medida em que avança no texto, aprisionado pela necessidade de alcançar o final. Num dos primeiros contos, que depois reescreveu e intitulou um livro, “Confidências de um amante quase idiota”, revelou um processo de visitar a criação para lhe estabelecer uma maturidade no domínio da frase sem arrodeios, patenteando seu corpo processo de escrita como um verdadeiro artífice da frase, eliminando os excessos e procurando atingir o ponto máximo do texto com a palavra despida, para que o leitor se encarregue de vesti-la com sua percepção. Não devemos esquecer que esta obsessão pela palavra começou com Machado de Assis, que passou o bastão para Graciliano Ramos, que o entregou a Moreira Campos, os três grandes, senão os maiores da língua portuguesa. Cabem aqui os excessos de grandes e maiores, porque estamos tratando de aperfeiçoamento do processo de criação literária em nível de excelência. Portanto, Rinaldo de Fernandes tem como antecessores os contistas mais respeitados em suas gerações. Segui-los e artemaniar sua escrita nas dos mestres é certeza de ter escolhido o melhor caminho.

Se seus contos são breves, alternando entre mini contos e contos comedidos na sua extensão, a densidade dramática, no entanto, se estende ao leitor como um fluxo de imagens que estabelece uma conexão com a realidade e exige que se volte ao texto mentalmente, afetando a psique do leitor como a onda envolve o banhista antes de lhe engolir pela força da maré. Assim são as imagens dos contos de Rinaldo de Fernandes. Neste novo livro, A mulher que sequestrou Chico Buarquepropõe, já no título, uma associação entre uma ação de subtração, o sequestro, a uma figura pública conhecida, como Chico Buarque. Certamente o leitor, na sua primeira leitura paratextual, pode ser instado a pensar que está diante de um dilema entre o real e o imaginário, na possibilidade de ter sido um fato verídico que está vindo à tona pelo relato do escritor. Ora, no próprio convite para o lançamento, que circulou nas redes sociais, muita gente questionou se era um ensaio sobre um fato ocorrido com o compositor, se o livro era do Chico Buarque ou sobre Chico Buarque. Eu pacientemente pedia par que lesse o convite e não perdesse a data. Nesses tempos líquidos, a liquidez da visão cega os que são levados pela imagem e não contemplam os signos a ela referentes.

É aí que entramos na essência do livro. A mulher que sequestrou Chico Buarque está inserido na contemporaneidade de forma a integrar o mundo dos instantâneos ao mundo da reflexão profunda. O primeiro conto “O errante sou eu” é uma síntese da História do Cristianismo e das visões de mundo pautadas no agora, no descartável, no inusitado. As contradições sociais, não necessariamente de classes, estão aí postas como se fosse uma cena comum da acirrada luta acentuada, depois da eleição brasileira que fraturou a sociedade e fez se erguer o banal, o cruel e o insano como verdades para um povo que crucifica o vivo (homem comum),negando a vida simbólica do crucificado na História. O Jesus Cristo morreu para nos salvar, dizem as escrituras, mas n’O errante sou eu, o Jesus é o pobre destituído de compaixão que atrapalha o bom andamento da vida líquida dos errantes do conhecimento. Vejamos no conto:

Eu ia para a minha condenação carregando, estropiado, a minha cruz. E, ao passar por uma rua, um tipo me negou um copo d’água. E zombou de mim: “Anda, reizinho, te apressa daí!”. Então me voltei para ele e o esconjurei: “Nunca morrerás, viverás por muitos lugares e até o fim das eras”. Mas – eu soube quando conduzido para ser pregado – ele colapsou na mesma tarde. E, mesmo crucificado e morto, feito alma punida, quem se mete por tantos campos e cidades e irá até o fim das eras sou eu.

Os dois personagens que contracenam num diálogo seco, que demonstra lados opostos de uma vida miserável, embora estejam no mesmo plano da narração, o condenado cumpre uma sentença irremediável. Estropiado, carregando a cruz da existência (não precisa dizer quais são, a elipse é autoexplicativa para os que conhecem a penúria do Cristo pela via crucis), ele vai ao seu destino de pobre diabo, impossibilitado de qualquer redenção em vida. A classe a qual pertence produz o mesmo destino para todos, a morte com fardos intermináveis. Quanta mitologia reside neste conto. Prometeu e sua agonia dos dias em que terá o fígado dilacerado; Síssifo e sua pedra da existência que nunca alcançará o topo da sua caminhada, para citar apenas dois.

Mas o “tipo” que negou o copo d’água também é miserável. Não alcançou a compaixão e jamais será “salvo” porque sua condenação é viver no instante presente, negando possibilidades aos seres mais pobres do que ele. Aos dois, condenado e tipo que nega está a contradição da existência sem solidariedade, sem fraternidade e, seguindo a visão religiosa, sem amor ao próximo. Evidente que se trata de um conto alegórico. Sofrimento, morte, ressureição estão ali postos simbolizando a vida de um Jesus qualquer e seu algoz, homem contemporâneo destituído de humanidade. O ato de zombar, de negar um copo d’água diz tudo sobre o personagem tratado como “tipo”. O ato de esconjurar “Nunca morrerás, viverás por muitos lugares e até o fim das eras”, sentenciar e revelar uma certa vingança ao final, comparando a pretensa salvação de viver depois de morto é do condenado “quem se mete por tantos campos e cidades e irá até o fim das eras sou eu.

Esta indefinição do sujeito, sem nome e sem identidade que o defina, aparece também como leitmotiv em outros contos, onde o personagem é classificado como tipo, o homem, um homem. E estes “desclassificado”, “desqualificado”, “inominado” podem transitar em qualquer classe social ou estarem inseridos em quaisquer locus social, político, racial, religioso. Lembro dos personagens inominados de Moreira Campos, como nos incomodavam. “O anão” que o diga. Pois o Rinaldo nos oferece o mesmo enigma moreireano.

No conto “Tem nada não, puta!”, a puta se refere a um “tipo de homem” sem qualificá-lo, como se qualquer homem pudesse acedê-la, desde que com a devida paga. Sendo assim, “tipo” nada mais é do que um termo genérico, como podemos ver no dicionário Oxford, de consulta na internet: tipo “é objeto ou coisa que serve ou se usa para produzir outro igual ou semelhante”.

No conto “Divagação sobre um rato”, o personagem tipo é “um homem”. Mas que homem? Qualquer homem. Em “Dr. Fauzi”, no entanto, o próprio título do conto já nomeia o personagem como Fauzi e acrescenta-lhe o indicativo de valor, doutor. Embora doutor não seja bem aplicado ao juiz, pois não diz se ele tem doutorado, só o fato de o chamar de doutor já indica uma posição social destacada numa sociedade de falsas hierarquias. O mesmo tipo de “um homem” aparece no conto “Uma história de amor”. Diferente, no entanto, um homem torna-se “o homem”, especificado pelo artigo definido como o personagem da ação no conto “O documento”.

Estas particularidades de indefinição são artimanhas engendradas pelo autor para que o leitor exerça o seu direito de completar a narrativa pelas entrelinhas, preenchendo as lacunas subjetivas inerentes aos personagens com as associações que fará se usar a sua capacidade de observação da realidade ficcional ou real.

Quanto aos mini contos, estes carecem de um estudo à parte, que me darei o prazer de realizar em outro momento, principalmente porque um desses contos, “As moscas do cochilo”, dedicado a este escritor-leitor, é pura poesia. E na praia da poesia sempre há espaço para o mergulho e para a contemplação. E os minicontos do Rinaldo são poesia em prosa, alinhados com o melhor do Quintanismo, do Cecilismo, e do Barrismo, do Manuel.

Ler A mulher que sequestrou Chico Buarque é se deliciar com a continuidade de Machado, Graciliano, Moreira, Rosa, Lygia, Clarice e tantos extraordinários narradores que apontam para um horizonte esplendido na Literatura Brasileira.

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Uma resposta

  1. Ótima resenha, Gildemar! Recentemente escrevi resenhas de dois livros do Chico para o meu blog. O Chico é um excelente escritor! Merece todo o reconhecimento que vem tendo na literatura.