O fragmentado processo eleitoral de 2024 me faz recordar Jacques Rancière para quem a democracia é “o reino dos desejos ilimitados.” O autor vai elaborar uma sofisticada síntese sobre o tema para concluir que a “democracia se ergue sobre a desordem, mas a desordem também se ergue sobre ela.” Em resumo, a democracia ergue-se sobre a desordem quando a arena pública é mediada por argumentos consistentes e pautados na pluralidade. Em uma ideia: a busca do ideal; em uma palavra: a cidadania.
Para compreende-la melhor convêm as palavras de Manfredo Oliveira para quem o “projeto democrático é fundamentado na busca da liberdade humana validada na razão.” Em tempo, a democracia como processo aposta no contraditório como imperativo. Busca sempre o equilíbrio entre as forças políticas e interesses coletivos. Nesse ambiente, a divergência e a convergência caminham juntas. Contudo, há momentos em que a desordem se impõe à democracia. Então ela deixa de comandar o processo e se torna objeto de um projeto de poder. Desta forma, a democracia não passa de uma retórica grotesca onde o conceito de liberdade confunde-se com o de libertinagem; a discussão sobre a cidade é substituída por dancinha da moda; o achincalhamento público dá-se como método.
É vil este tipo de processo, pois desdenha da inteligência popular, fazendo a esperança ceder lugar ao medo! Como resultado, a democracia vira objeto a distorcer o real, sem, contudo, retirar o verniz da seriedade. Emerge daí o famigerado antissistema.
Neste sentido, bem cabe chamar Boaventura Sousa Santos para quem em ambientes como este há sérios riscos de se“perder a democracia, democraticamente.”
Convém lembrar que a antidemocracia aparece no sufocamento da própria democracia. Logo, é fácil identificar o antidemocrata, pois ele irá sair do meio da poeira levantada pela implosão da democracia. Para manipular o público; a fé e a mídia – à lá Goebbels – ele é capaz de qualquer coisa, se dizer enviado; levar uma cadeirada ou mesmo ensinar depilação íntima. Por isso, não podemos desdenhar do atual momento eleitoral. Desde a redemocratização, este é o processo com maior grau de coisificação da democracia baseada em memes e dancinhas de lacração. Isso gera uma falsa comunicação a impossibilitar a radicalidade, ou a racionalidade como lembrado por Manfredo. Desta forma, tende a ser mais letal do que o processo anterior que se inclinava à polarização de dois projetos de poder. Agora, ao parecer mais casual, traz em si a capacidade fundamental de sufocar a democracia, e ao abrir-se à desordem, sempre com laivos de liberdade, pode ter como resultado mais um mito.
Rafael dos Santos da Silva
Professor, Presidente da CDH/UFC