Visita ao Filho: E o estar extraordinário do homem comum

Fortaleza, 2014. Entrando na segunda década de um novo milênio, nossa cidade se apresenta como um organismo pulsante e eminentemente dicotômico. E assim como uma metrópole dividida entre um estar bairrista e outro marcado pela verticalização imobiliária, um homem comum se apropria do espaço público numa itinerância com ares de busca. Esse ser extraordinário que emerge de tudo o que nele há de ordinário está presente no cativante “Visita ao Filho”*, de Fred Benevides.

Inspirado no conto “A Visita ao Filho” de Moreira Campos, o filme narra a estória de Manoel, um senhor de meia idade que perambula pelas ruas de Fortaleza à procura do filho, Tavinho. O curta-metragem parte, portanto, da literatura. E a exemplo de “As Corujas” (2009) e “Dizem que os Cães Veem Coisas” (2012), se vale da obra do escritor fortalezense dando forma às ideias deste e colocando nossa própria cidade em pauta. Mas como o realizador agencia as linguagens nessa construção?

A chave parece residir na simplificação no trato dos conceitos. E se o conto, como unidade mínima do romance, se estrutura de forma mais sintética, Fred acaba trabalhando numa lógica relativamente inversa. Porque em “Visita ao Filho”, a impressão que temos é a de estarmos diante de um filme que se expande para vários outros filmes dentro dele mesmo. Partindo do início, vamos pensar sobre a sequência que compõe o prólogo do curta.

Em 4 minutos e 42 segundos de metragem, vemos Manoel tentando matar moscas enquanto um pequeno aparelho de som transmite noticiário e músicas diversas. O modo como a cena é idealizada, o entanto, nos dá um recorte independente mas que ao mesmo tempo nos lança para frente da estória e a potencializa enquanto unidade fílmica. Porque, o filme é sim narrativo, mas os demais elementos que o constituem lhe dotam de uma complexidade que evoca um cinema incapaz de subestimar nossa interpretação espectatorial.

visitaaofilho_carnaval3E se falamos da forma, como não sermos tocados pela confluência maravilhosa de tudo o que juntos podem ser os planos que compõem cada cena e a fotografia desse curta?! É o rigor estético da câmera fixa que nos dá um recorte quase pictórico, de ruas e avenidas, bem como a dos cômodos domiciliares que são pintados na tela. E essa assinatura do fotógrafo Victor de Melo (Vitinho), nos remonta novamente à riqueza da linguagem cinematográfica que irrompe determinismos.

Porque é olhando para “Visita ao Filho” que vemos muito de Abbas Kiarostamy (Irã) ou Nuri Bilge Ceylan (Turquia). Mas também encontramos importantes notas de um fazer cinematográfico contido em Júlio Bressane e Andrea Tonacci. Desse ator que está em função da câmera e que junto à ela constrói a cena, dosando atuação marcada com o improviso em torno da mise-en-scene , ou seja, da construção cênica que o filme propõe. O improviso, a propósito, é um elemento que nos dá muitas saídas interpretativas da obra.

Uma delas é o fato de o curta se tornar um trabalho bastante pautado na ação. O plano pode ser fixo, como sabemos, mas há sempre um fazer performativo em curso. Seja o de Manoel, dançando numa sala ou cantarolando enquanto aguarda um copo d`água numa calçada; seja de uma travessia feita pelo poeta e andarilho Mário Gomes (certamente um dos momentos mais sublimes do filme dentro de tantos outros que o compõem). São as performatividades que se costuram com um registro quase documental, que flerta com o drama, a comédia e um fio de surrealismo.

Esse estar surrealista é aquele observado no segundo momento do curta, se considerarmos sua estrutura dividida em duas partes. Numa primeira que se estende até os 15 minutos e 28 segundos de metragem e tem uma pegada bem naturalista com o improviso das personagens como ferramenta moduladora da atuação. E uma segunda, iniciada efetivamente com a sequência dos 10 planos seguidos dessas pessoas que são uma espécie de “paisagem morta” e que reforçam a concepção do quadro pintado pelo fílmico. É o cinema como sonho tal qual evocara Edgar Morin.

Mas como obra aberta à interpretação e que conta com o olhar que a ela lançamos, ‘Visita ao Filho” é um filme de diálogo. E que ao invés de nos impor uma visão acabada em torno de um tema, se desarma abrindo-se ao espectador. Dando-o a possibilidade de também construir tal estória por meio da sua interpretação. É um trabalho de conexão, como é pensarmos uma conversa direta que a sequência final do curta nos sugere com a Nouvelle Vague  francesa, por exemplo.

Impossível não lembrarmos a cena de abertura de Os Incompreendidos (1959) com François Truffaut desvelando a França em seus prédios e construções. Fred faz semelhante com Manoel visto de baixo pra cima, em contra-plongée, em meio a uma Fortaleza que não é apenas bairrista, mas também dos gigantes e, em alguma medida, opressores prédios das áreas nobres.

É um contraste que se coloca como um problema eminentemente político pelos olhos de um realizador que, acima de tudo, vê a feitura dos dias de uma forma positiva. Num importante pensamento de que, independente das complexidades imbricadas no nosso cotidiano, tudo vai, sim, dar certo.

FICHA TÉCNICA
Título Original: Visita ao Filho

Gênero: Curta-Metragem, Drama, Comédia

Tempo de duração: 24 minutos

Ano de lançamento (Brasil): 2014

Direção: Fred Benevides

Daniel Araújo

Crítico de Cinema, Realizador Audiovisual, e Jornalista.

Mais do autor

Daniel Araújo

Crítico de Cinema, Realizador Audiovisual, e Jornalista.