“Tendo despido o pijama, dirigiu-se ao banheiro para tomar um banho, mas a mulher já se trancara lá dentro”. [Fernando Sabino, em O homem nu].
[Continuação]
O seu infortúnio superava, em muito, a crise que, em Dom Casmurro, abateu Bentinho, ante a desconfiança, persistentemente alimentada pelo excessivo ciúme que por ela nutria, de ter sido traído por Capitu, a amada, e Escobar, o amigo. Lá, havia apenas um forte indício: a aparência física do filho Ezequiel com o amigo desleal. Aqui, o fato se revestia de inabalável concretude. Havia prova material: as fotos de momentos de plena fruição amorosa; além da confessional: a declaração dela – que lhe afligiu o coração – de que não mais faria parte de sua vida, porquanto, apesar de seus quarenta e alguns anos, apaixonara-se por uma jovem colega de academia, com algo mais que vinte, com um corpo bem delineado, fruto de muita malhação, e comportamento pouco feminil. E que já se decidiram – para evitar que pensem tratar-se de uma simples aventura – compartilhar, doravante, todos os dias de suas agora enleadas vidas.
Na partilha provisória dos bens patrimoniais do casal, coube a ela ficar com o apartamento em que até então moravam, mudando-se ele para o outro, mais modesto, cujo aluguel ajudava a equilibrar o orçamento familiar, mas que se encontrava, no momento, sem inquilino. Admitira isso para não tornar mais traumática a separação. Acreditava que, quando a poeira baixasse, as coisas se resolveriam.
O corpo clamou por banho. Despiu-se, jogando descuidosamente a roupa ao chão. Enrolou-se na toalha até a cintura, caminhou para a sacada e, por alguns minutos, lançou um despretensioso olhar para a cidade feericamente iluminada. Arrastou, pelo caixilho da esquadria de alumínio, as duas folhas de vidro de correr, e uma lufada de vento morno açoitou-lhe o rosto e o peito, emaranhando-lhe o já grisalho cabelo. Arrepiou-se e o corpo todo tremeu em calafrios. Inquietou-se ante a sensação de desequilíbrio. Desesperançou-se. Sentiu-se envolto em processo de morte lenta e gradual.
Reagiu com muita raiva, mandando o mundo às favas; em especial, os amantes e os médicos. Acionou o controle remoto do mini system de uns 300w de potência, para ouvir, em som ambiente, os detalhes e as canções e as propostas e as emoções de Roberto. Caminhou até o armário em que guardava suas preciosidades. Retirou de lá o litro de Johnnie Walker (Red Label) que ali abandonara, por aconselhamento médico, e se serviu de uma dose generosa. No frigobar, apanhou algumas pedras de gelo. Quanto às recomendações do clínico, essas já não mais lhe diziam respeito. Sorveu uma boa quantidade da bebida, sentindo o álcool lacerar-lhe o íntimo. Repetiu o gesto e um forte calor envolveu-lhe o corpo. Decidiu ir banhar-se. Largou na mesa o copo vazio ao lado da garrafa de uísque e se dirigiu ao banheiro.
Surpreendeu-o a impressão da presença da amada. O agradável e atraente cheiro de seu corpo parecia emanar das paredes revestidas do ambiente. Perturbou-se ao perceber, em face daquela ilusão, que se fragilizava mais ainda. Voltou à mesa, serviu-se de mais uma generosa dose de uísque e… [“Pois, sem você, meu mundo é diferente, minha alegria é triste]”. Sem sequer lembrar-se do gelo, ingeriu todo o líquido de uma só vez. [“E, agora, eu choro só, sem ter você aqui].”
Viu à sua frente a cama de lençóis macios e travesseiros soltos, além da roupa espalhada pelo chão. Sobre o criado-mudo, um exemplar de Dom Casmurro, do mago das palavras, Machado de Assis, cuja releitura já se encaminhava para o fim. De pé, sorridente e afável, ela… surgida do nada, a mesma imagem da primeira vez. Meio confusa, desabotoava os botões da blusa que usava, deixando-o ver o muito que tinha a lhe oferecer. O corpo nu da amada, espargindo sensualidade, despertou o instinto do macho. Jogou a toalha sobre as roupas abandonadas e caminhou lentamente em direção a ela… [“Eu te proponho nós nos amarmos, nos entregarmos…”]. Os braços abertos e o olhar de carência fixo na amada, na verdade do desejo de seus recorrentes sonhos [“Vou me agarrar aos seus cabelos…”].
A imagem à sua frente rapidamente se desfez. E ele abraçou o nada.
Chovia lá fora.
Ele se desesperou.
Delírio. À sensação de perda de equilíbrio, juntou-se a dor de cabeça lancinante. Desvario. As batidas do coração se aceleraram. A vista turvou-se. Alucinação. Abatido pela solidão que a traição e o desprezo lhe impuseram e envergonhado ante sua nudez flácida, encobriu o rosto com as mãos e chorou. Entre soluços, o último apelo:
– Jesus Cristo! Jesus Cristo!
A corrida célere para a sacada. E o salto para o nada… para a morte, enfim.
Um dos jornais impressos publicou, na edição do dia seguinte, foto do corpo envolvido em branco lençol, encimada por manchete que emprestava um pouco de poesia ao realismo trágico: O VOO PARA A MORTE DO HOMEM NU. E um curto texto que começava assim: A vida e suas complexidades…