Véspera de fim de semana – uma simples lição de vida, por Luciano Moreira

O dia de trabalho terminara: o bar começou a encher-se de homens que procuravam repouso espiritual. Jorrava a cerveja, o álcool era medido em copinhos, preciosamente. Em stout, em bitter, em uísque, eles compravam sucedâneos de viagens ao estrangeiro e o êxtase místico; o sucedâneo da poesia, de weekends em companhia de Cleópatra, de caçadas em grande escala e da música.” (Aldous Huxley, em Contraponto, à pág. 364).

Lembrei-me de uma velha senhora, num desses estratégicos corredores entre abastecidas gôndolas de supermercado, numa tardinha de sexta, há não sei bem quantos anos.

Ao ouvir-me cantarolar baixinho o “Vai, minha tristeza e diz a ela que, sem ela, não pode ser…”, disse-me, quase numa prece de aveludados sussurros, a bem-humorada anciã, de prateadas cãs zelosamente cuidadas, o olhar de perspicácia azulada, entremeado por um quase imperceptível par de narinas apertadas, embora compondo um empertigado e levemente arrebitado nariz – nada soberbo –, e um sorriso de flor desabrochando que parecia fazer desaparecer do rosto suavemente acamurçado e de delicada pele as indeléveis marcas do tempo:

– E os bares se enchem de homens vazios…

Sorri-lhe um sorriso romântico, ou seja, bem mais nobre e lírico que prosaico, e respeitoso na essência, e completei, quase em murmúrio:

– E de mulheres vazias, também.

E ela, assumindo, de imediato, uma postura vanguardista, de quem procura compreender as mudanças – e, o que é mais interessante perceber, ajustar-se a elas, conviver com elas, sem traumas e sem críticas – que a humanidade, no curso do inexorável e sempre severo tempo, vai impondo ao seu modus vivendi, assinalou:

– É verdade! Saiba o senhor que gosto de esquecer o que já vivi e até rejuvenescer em meio ao barulho dos mais jovens num barzinho próximo da minha casa… uma cervejinha gelada… uns petiscos mais cheirosos que saborosos… uma boa conversa… gente bonita falando pelos cotovelos… uma musiquinha ao vivo… e eu… que sou apaixonada por violão e romantismo e vida bem vivida. – E percebendo, certamente, o meu interesse em saber onde tudo isso acontecia, arrematou: – Aí eu lhe pergunto: não seria isso o jardim do Éden?!

Então, mesmo correndo o risco – quase sempre inarredável em tempos de bullyng e assédios – de ser mal-entendido, brinquei:

– Perdão se sou indelicado, mas há algum Adão no pedaço?

Ela sorriu um sorriso enviesado, meio moleque, e confidenciou-me:

– Bem melhor seria se houvesse… – E, olhando-me de soslaio, afastou-se, como se desfilasse numa pista de dança, cantarolando “Diz-lhe numa prece que ele regresse porque não posso mais sofrer…”

E os meus olhos castanhos, de encantos tamanhos, captaram aquela imagem de rara naturalidade e deslumbramento – de quimeras mil, tonto de emoção –, e com riqueza de detalhes, enquanto uma sensação de calmaria invadia-me a soturna alma que certamente solfejava parte da música cuja letra diz assim: “É só tristeza e a melancolia que não sai de mim, não sai de mim, não sai”.

E o pensamento fez-me, então, adejar por tantas outras intensas vivências que as sempre frutíferas – Ah, as edênicas macieiras cujos frutos podem até ter-me sido sub-repticiamente oferecidos, embora nem minimamente desejados! – relações interpessoais já me impuseram pelos vãos e desvãos da minha sôfrega e acanhada existência, demasiadamente humana, como protagonista ou antagonista ou coadjuvante ou figurante ou mero espectador ou, até mesmo, como simples e descartável cobaia.

O retorno à terra firme deu-se envolto em questionamentos. Quantas vezes não já viajei nas asas de uma loiríssima estupidamente gelada?! Quantos projetos não já idealizei em meio ao êxtase místico a que alude Huxley?! Quantos castelos ergui sobre alicerces de água, cevada e lúpulo?! Em quantas agradáveis conversas e filosóficas ou sociológicas ou futebolísticas ou políticas discussões já me envolvi em barezinhos, fixos ou móveis, com pessoas formidáveis que queriam apenas viver?! E quantas ressacas fizeram as transparentes águas de meu inexpressivo rio interior retomar o seu curso natural – às vezes agradavelmente tortuoso, tantas outras perigosamente retilíneo – e deslizar incansavelmente num tosco leito de pedras e areias, areias e pedras?!

Quem nunca sequer experimentou vivenciar esse tipo de “repouso espiritual” certamente não sabe do que estamos – eu e Huxley – falando.

Viver pode até ser perigoso, mas não deixa, por isso, de ser saboroso.

Carpe diem quam minimum credula postero. Viva o hoje plenamente; afinal, pode ser que o amanhã… bem… nada demais. Só não podemos nos afligir ante a certeza pétrea da finitude humana. Graças a Deus!

Francisco Luciano Gonçalves Moreira (Xykolu)

Graduado em Letras, ex-professor, servidor público federal aposentado.

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Graduado em Letras, ex-professor, servidor público federal aposentado.