UMA DEMOCRACIA VAZIA, por Alexandre Aragão de Albuquerque

Quando pensamos em lama, uma imagem que emerge rapidamente é a da vara de porcos imundos esbaldando-se na sujeira de uma pocilga. Porcos são os principais hospedeiros da Taenia sollium, causadora de doença denominada teníase ou cisticercose. A cisticercose é um mal gravíssimo, pois os cisticercos se localizam no sistema nervoso central, podendo permanecer por vários anos a determinar ataques de epilepsia, crises convulsivas, cefaleias, náuseas, alterações da visão e até mesmo a morte do sujeito.

Essa imagem dos porcos, da lama e da teníase nos provoca a pensar o tempo presente.

Os fatos ocorridos no último domingo 08/07, nos quais um desembargador, membro efetivo de tribunal federal, no exercício legítimo de suas funções e autoridade, em regime de plantão, expediu à polícia federal uma ordem de soltura de um réu, cujo processo ainda não transitou em julgado, atendendo a um habeas corpus impetrado pela sua defesa, mexeram com o país em virtude da não obediência por parte do órgão policial ao mandado do magistrado.

Como se sabe, o habeas corpus é uma classe processual na qual um juiz tem o maior grau de liberdade, podendo conceder a ordem até mesmo de ofício sempre que observar um constrangimento ilegal sofrido por um indivíduo. Esta é a base da fundamentação jurídica que regia o país no tempo em que havia alguma consistência e coerência no Direito praticado no Brasil, quando tínhamos uma democracia constitucionalmente efetiva e substantiva. O referido desembargador identificou constrangimento ilegal por parte da juíza de execução em sua inércia em não apreciar demanda do referido réu, relativa ao exercício de seus direitos políticos.

Com o Golpe de 2016, muita coisa mudou. Estamos numa depressão econômica sem precedentes. O desemprego atinge recordes históricos. O déficit público está na estratosfera. Nossa política externa, concebida a partir de 2003, reconhecidamente fundada num protagonismo inovador e autônomo, seja pela ampliação do diálogo Sul – Sul e pelo fortalecimento da comunidade sul-americana, como pela criação de um organismo alternativo – BRICS – ao poder hegemônico ianque, desabou ladeira abaixo retornando à submissão colonial do poder imperial estadunidense. As contrarreformas sociais – trabalhista e previdenciária – têm como objetivo reduzir os direitos sociais ao tempo da escravidão. A gasolina e o óleo díesel sofrem aumentos diários, apesar de sermos autossuficientes na produção de petróleo. Essas citações são apenas para termos presente o quanto o Brasil retrocedeu nos últimos três anos. Estamos num vazio democrático.

Contudo, uma das mudanças mais comprometedoras, resultado da articulação golpista, é o desmantelamento de nosso sistema judiciário. E o acontecimento do domingo passado (08/07) passa a ser emblemático e elucidativo.

O que garante uma nação como democrática é a sua Constituição. Portanto, por definição, toda Constituição democrática é garantista. Além disso, o constituinte é constituinte popular porque foi colocado nessa condição por força do voto do povo. Consequentemente, cumprir e obedecer à Constituição são obrigações de todas as instituições e agentes públicos.

Acontece que quando o réu tem por nome LULA, parte dos agentes públicos dos poderes executivo, legislativo e judiciário não cumprem as regras constitucionais. Com relação ao ocorrido em oito de julho, a coluna Painel, da Folha de S. Paulo, registrou que na avaliação de ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Superior Tribunal de Justiça (STJ), o juiz Sérgio Moro, juiz de primeira instância, que estava de férias em Portugal, “escorregou numa casca de banana” ao reagir à decisão do desembargador Favreto, de segunda instância, e “pisou em falso” ao ordenar que a Polícia Federal não acatasse a ordem de soltura de LULA. Essa atitude, além de muitas outras passadas, reforça a tese de que ele atua de maneira parcial contra Lula. Como disse o jurista Lenio Streck, ninguém que está de férias pode contrariar a decisão de um desembargador plantonista. Para o ex-governador Tarso Genro, do Rio Grande do Sul, “Moro instaurou a jurisdição de exceção para poder processar e prender Lula. As instâncias superiores apoiaram e consolidaram-na. Hoje ele humilha nossa justiça penal perante o mundo. Diz: estou acima da Constituição. Eu sou a lei. É o que provou ontem”.

A soberania popular, as mulheres e homens de bem, os agentes públicos e instituições comprometidos com a Constituição Cidadã de 1988, precisamos todos reagir a esse casuísmo. Como lembra Dostoiéviski, “para voar é preciso ter coragem para enfrentar o terror do vazio, porque é só no vazio que o voo acontece”. É hora de alçarmos novos voos, juntos, rumo à nossa democracia perdida.

Alexandre Aragão de Albuquerque

Mestre em Políticas Públicas e Sociedade (UECE). Especialista em Democracia Participativa e Movimentos Sociais (UFMG). Arte-educador (UFPE). Alfabetizador pelo Método Paulo Freire (CNBB). Pesquisador do Grupo Democracia e Globalização (UECE/CNPQ). Autor dos livros: Religião em tempos de bolsofascismo (Independente); Juventude, Educação e Participação Política (Paco Editorial); Para entender o tempo presente (Paco Editorial); Uma escola de comunhão na liberdade (Paco Editorial); Fraternidade e Comunhão: motores da construção de um novo paradigma humano (Editora Casa Leiria) .

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Alexandre Aragão de Albuquerque

Mestre em Políticas Públicas e Sociedade (UECE). Especialista em Democracia Participativa e Movimentos Sociais (UFMG). Arte-educador (UFPE). Alfabetizador pelo Método Paulo Freire (CNBB). Pesquisador do Grupo Democracia e Globalização (UECE/CNPQ). Autor dos livros: Religião em tempos de bolsofascismo (Independente); Juventude, Educação e Participação Política (Paco Editorial); Para entender o tempo presente (Paco Editorial); Uma escola de comunhão na liberdade (Paco Editorial); Fraternidade e Comunhão: motores da construção de um novo paradigma humano (Editora Casa Leiria) .