Somos todos mentirosos irrefreáveis?

“Os seres humanos são grandes mestres da mentira”.
David Smith

“O essencial é não mentir; e antes de mais nada não se mentir”.
André Comte-Sponville

Alguns livros começam tão fortes que é prudente fazer um pouso cuidadoso. Livro bom costuma trazer solavancos logo na entrada. Para que saibamos que a caminhada deve ser atenta, cautelosa, realizada sem pressa. Somente em doses miúdas é possível bordar uma história que vale a pena ser contada. Os grandes livros que falam do universal costumam fazê-lo no que há de singular nas travessias de um ser humano. Algo que está contido no início da confissão que Jorge Luís Borges fez à mãe, Leonor: “Quero deixar escrita uma confissão, que a um tempo será íntima e geral, já que as coisas que ocorrem a um homem ocorrem a todos” (1999, p.7).

O livro “X da questão: o sujeito à flor da pele” (2003) é o mais autobiográfico de Edgar Morin. No prefácio ele anuncia: “este livro sou eu”. Aos quarenta anos de idade Morin entrou na turbulência de uma crise existencial. Nessa época (Morin nasceu em 1921, atualmente está com 93 anos) ele já era um intelectual renomado e atendia a diversas solicitações. Além das atividades como professor, pesquisador, editor, diretor, ele escrevia artigos, livros, fazia conferências, assinava protestos, militava, viajava, ao mesmo tempo em que sabotava a vida pessoal.

O prazer de ser açodado, como se fosse indispensável, solicitado por toda a parte; o prazer de estar sempre atrasado, o prazer nauseado de ver as chamadas telefônicas, em ondas ininterruptas, cortar em pedaços toda conversa com um interlocutor. Entretanto, em pouco tempo, sinto o acúmulo de estresses provocados pela necessidade de desconectar e reconectar, várias vezes no mesmo dia, todo o dispositivo mental. O trabalho cada vez mais apressado, rascunhado… (p.14)

Morin afirma que estava tomado pelo espírito da superficialidade. As amizades ruíam destronadas pelos bajuladores de plantão, o casamento findou, sucessões de amores entrecortados ocuparam os cenários de sua vida. Tudo era efêmero, nada conseguia florescer. Estar solto no mundo sem o amparo dos laços internos tributou o crescimento da angústia. “Eu sentia, primeiro obscuramente, depois de forma cada vez mais clara, que esta vida não era minha vida” (p.16). Então, sufocado pelas urgências dos afazeres, foi invadido por uma gripe, depois por uma febre alta que não passava. Então veio o hospital, a internação e o alívio: “No momento em que entrei em meus lençóis, aturdido, meio inconsciente, perpassou-me uma alegria infinita. Era finalmente arrancado do turbilhão” (p.17).

A internação hospitalar durou meses. Relata que após tempos em estado vegetativo conseguiu pouco a pouco sentir uma humanidade renascida. Foi recuperando o interesse pelo mundo. No caminho do reencontro com sua interioridade, teceu a busca no sentido de decantar o essencial do acessório. Não queria mais mentir para si. A condição de existência agora era a de não viver na mentira.

Imagem: A tragédia (detalhe). Gustav Klimt. 1897.

Imagem: A tragédia (detalhe). Gustav Klimt. 1897.

É possível decantar a verdade da mentira em nossos dias? Morin percebeu que caiu nas armadilhas do autoengano e a falsidade cresceu desproporcionalmente em sua vida ao ponto de gerar um forte adoecimento. Mas porque mentimos para nós mesmos? Porque mentimos para os outros? David Smith (2006) afirma que aprendemos a mentir porque a mentira é extremamente vantajosa: “Somos animais enganadores por causa das vantagens que a desonestidade proporcionou a nossos ancestrais, e que ainda proporciona a nós hoje em dia” (p. 3). Equipado com o olhar da biologia evolutiva, o autor direciona a reflexão não somente para a vantagem imediata da mentira, mas fundamentalmente aponta para outra, adquirida num prazo bem mais longo: a que é transmitida geneticamente.

Ao longo do processo evolutivo da espécie desenvolvemos mecanismos que possibilitaram recalcar a verdade de nós mesmos. Afinal, se pensarmos nos processos inconscientes há uma tensão constante entre o que chega à consciência e o que fica mantido oculto ou disfarçado. Se no mundo interno há a tensão inevitável entre verdade e mentira, no mundo externo a mentira está em todo lugar: das falsas promessas dos políticos de ofício aos anúncios publicitários. Enfim, introjetamos e projetamos um complexo tear de verdades e mentiras imbricadas, emaranhadas, misturadas. Para o autor, mentira é “qualquer forma de comportamento cuja função seja fornecer aos outros informações falsas ou privá-los de informações verdadeiras (p. 5) e entende como autoengano “qualquer processo ou comportamento mental cuja função é ocultar informações da mente consciente de uma pessoa” (p. 12).

Um exemplo corriqueiro das mentiras diárias pode ser encontrado das redes sociais. A pessoa “na vida real” amanhece abatida, sentindo-se feia, um pouco vítima das necessidades do próprio desamparo. Está infeliz, ansiosa, levou um fora do namorado, está com muitas dívidas financeiras. Escolhe um vestido preto para disfarçar o ganho de peso e capricha na maquiagem. Faz vários selfies com poses variadas e sorriso largo. Antes de postar nas redes sociais experimenta filtros que disfarçam a expressão cansada, iluminando o olhar e o sorriso. Quando consegue chegar ao ponto de se achar mais bonita do que ela considera que é na realidade, lança a imagem no mundo virtual com a legenda “feliz!” Ao longo do dia acompanha as curtições e comentários que costumam resumir o argumento numa única palavra: linda!

Não temos como saber se as curtições e comentários são verdadeiros, pois as pessoas mentem. Inclusive a pessoa que postou a foto utilizou os subterfúgios da mentira e do autoengano. Alguém pode soltar um fervoroso e exclamatório “lindo”, quando quer dizer “você está horrível com essa roupa” ou “eu não gosto de você”. Mas isso seria um desastre! Smith (2006) taxativamente diz que a sociedade humana desmoronaria sob o peso de uma honestidade excessiva. “Pequenas mentiras, pequenos derivativos, remedinhos, estimulantezinhos… Não sejamos severos demais. Nem sempre podemos dispensá-los. Mas a sabedoria é outra coisa. A sabedoria seria a felicidade na verdade (COMTE-SPONVILLE, 2001, p. 12).

Chego ao ponto fundamental na questão da mentira: o diálogo com a verdade. A artista Cindy Sherman confundiu muita gente ao produzir seus 69 retratos em Untitled Film Stills. Com a intenção de criticar o chauvinismo masculino de Hollywood, a artista brinca com a noção de identidade pela imitação dos clichês das campanhas publicitárias que divulgam as personagens de um novo filme. Sua obra é carregada de ironia, já que exibe nas entrelinhas as chagas de nossa cultura contemporânea, “um constante fluxo de imagens adulteradas destinadas a manipular o consumidor resultou em uma sociedade não mais capaz de distinguir entre fato e ficção, verdade e mentira, real e falso” (GOOMPERTZ, 2013, p. 371). Os solavancos que a arte propicia, afinal de contas, não são pela arte. São pela vida revelada, pelos lampejos de uma verdade negligenciada ou camuflada.

Untitled Film Stills, n. 28, 1978. Cindy Sherman.

Untitled Film Stills, n. 28, 1978. Cindy Sherman.

Comte-Sponville (2001), revivendo Platão, argumenta: “muitas ilusões confortáveis me tornariam mais facilmente feliz do que várias verdades desagradáveis que conheço” (p. 12/13). Mas a questão fundamental não é o ser feliz, mas o ser feliz verdadeiramente:

Trata-se de pensar não no que me torna feliz, mas o que me parece verdadeiro – e fica a meu encargo tentar encontrar, diante dessa verdade, seja ela triste ou angustiante, o máximo de felicidade possível. A felicidade é a meta; a verdade é o caminho ou a norma. Isso significa que, se o filósofo puder optar entre uma verdade e uma felicidade – felizmente, o problema nem sempre se coloca nesses termos, só às vezes – se o filósofo puder optar entre uma verdade e uma felicidade, ele só será filósofo, ou só será digno de sê-lo, se optar pela verdade. Mais vale uma verdadeira tristeza do que uma falsa alegria (p. 13/14).

“A humanidade permanece, de forma impenitente, na caverna de Platão”, disse Susan Sontag (2004, p. 13). O que Comte-Sponville propõe é o caminho da sabedoria, mas sabemos que não é nada fácil ser sábio. É para poucos. É para raros. É para os corajosos. Na realidade somos, sim, grandes mentirosos. Mas é possível humanamente pensar, refutar, resistir, desistir, colocar algum freio. Não se mentir e assim inventar uma vida autoral. Edgar Morin fez uma travessia rumo à invenção de si ao passar pela crise aos quarenta anos. Deu complexidade à sua história. “Aos que alguma vez já desconfiaram que essa vida morna e tola que nos é oferecida e alardeada como a única possível, desejável e saudável esconde outras tantas. Cuja beleza e tentação cabe reinventar” (PELBART, 1993, p. 13). É o que nos cabe afinal de contas: inventar uma vida e viver!

Referências bibliográficas:

BORGES, Jorge Luís. Obras completas de Jorge Luís Borges. Volume I. São Paulo: Globo, 1999.

COMTE-SPONVILLE, André. A felicidade, desesperadamente. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

GOMPERTZ, Will. Isso é arte? 150 anos de arte moderna do impressionismo até hoje. Rio de Janeiro: Zahar, 2015.

MORIN, Edgar. X da questão: o sujeito à flor da pele. Porto Alegre: Artmed, 2003.

PELBART, Peter Pál. A nau do tempo-rei: sete ensaios sobre o tempo da loucura. Rio de Janeiro: Imago, 1993.

SMITH, David Livingstone. Por que mentimos: os fundamentos biológicos e psicológicos da mentira. Rio de Janeiro: Elsevier, 2006.

SONTAG, Susan. Sobre fotografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

Ana Valeska Maia Magalhães

Advogada, graduada em Artes Visuais, graduanda em Psicologia, aluna da Escola de Psicoterapia Psicanalítica de Fortaleza e Mestre em Políticas Públicas e Sociedade pela UECE. Autora dos livros “Pulsão Irrefreável: arte contemporânea no feminino” e “Tessituras: em contos, crônicas, poesias e imagens”.

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Ana Valeska Maia Magalhães

Advogada, graduada em Artes Visuais, graduanda em Psicologia, aluna da Escola de Psicoterapia Psicanalítica de Fortaleza e Mestre em Políticas Públicas e Sociedade pela UECE. Autora dos livros “Pulsão Irrefreável: arte contemporânea no feminino” e “Tessituras: em contos, crônicas, poesias e imagens”.

3 comentários

  1. Alessandra Holanda

    Ana Valeska, é engrandecedor “beber” do seu conhecimento. Como vivemos e vemos “falsa vida”, como temos a nossa volta “bajuladores de plantão”…essa crise dos 40 de Morin é cruel…mas, necessária( me vejo…). É preciso ter coragem para viver a vida verdadeira…mesmo não sendo fácil. Tenho amado acompanhar suas publicações.

  2. Keila Targino nascimento

    Fantastico o seu texto! Nos leva a refletir o quanto nos deixamos levar pelas próprias fantasias e imagens falsas e irrealidades sobre nós mesmos, pra isso temos que ser sábios como diz Sponvile, e não é fácil.