Quando? Idos de 1975, primeiro trimestre.
Onde? Localidade de Lagoa Seca, distrito de Vazantes, município de Aracoiaba.
Quem? Agente de Coleta da Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
O quê? Verificação e revisão de limites de setores, uma das fases de preparação para o Censo Econômico daquele ano.
Como? Percurso, a pé, por todo o entorno do setor com eventuais problemas de delimitação, conferindo o mapa da área, que contém as indicações originais dos pontos de referência e linhas imaginárias de interligação.
Concluída a primeira verificação, o Agente de Coleta caminha por estrada carroçável em direção ao segundo setor objeto de seu trabalho. Já é quase meio-dia. Sol a pino, nenhuma viva alma ele encontra no trajeto que faz. A sede surge e, à medida que ele avança, ela vai-se intensificando.
Nada há que pelo menos sugira a presença de alguém.
Aquilo era o fim do mundo, com certeza.
De repente, à margem esquerda da estradinha, ao lado de uma grande árvore, ergue-se um casebre de taipa e velhas e enegrecidas telhas de barro. Não, não se tratava de miragem. Havia ali uma moradia… alguém habitava aquela casa… e esse alguém iria socorrê-lo, saciar a sua sede.
Só não se fazia o silêncio absoluto, porque um bem-te-vi, acomodado em galho de frondosa mangueira plantada na parte mais ao fundo do lado direito da casa, soltava alegremente seus acordes pouco maviosos, como a lhe dar as boas-vindas.
Aproximou-se com passos decisivos e olhar de curiosidade. O quintal varrido há pouco denunciava a existência de ser vivo naquele oásis.
Ao lado esquerdo da casa, um cachorro vira-lata, magro e triste, rosnou fracamente.
– Esse não é de meter medo. – Admitiu o intrépido e sedento servidor público.
Bem próximo da porta da frente, somente a banda de cima aberta, ele pôde ter noção da parte interna do casebre. Sala, corredor, quarto, cozinha. Na frente, só a porta mais ou menos centralizada. No lado direito da sala, uma janelinha aberta clareia o ambiente. Casa de gente pobre… descrevê-la dá dó.
– Ô de casa! – Eis a saudação inicial do visitante inesperado em casa de sertanejo economicamente desprovido.
– Ô de fora! – Responde uma voz feminina, vinda do quintal.
– Minha senhora! – Ele avista um vulto de mulher adentrar a casa pela porta da cozinha. – Estou morrendo de sede. A senhora poderia me arranjar um copo d’água?
Neste momento, ele começou a processar alguns dados recolhidos no acesso àquela casa. Nas proximidades, não havia lagoa, açude, rio, riacho, córrego, poço, cacimba, cisterna. – De onde então viria a água consumida por aquela unidade familiar? Eis aí uma boa pergunta! – Arrematou o raciocínio.
Enquanto isso, os seus olhos recolheram as imagens de uma mulher magra, de andar arrastado, vestes simples, cabelos assanhados… um caneco de alumínio na mão direita, os dedos entrelaçados na alça. Conteúdo?! Um líquido precioso popularmente conhecido como água, com uma definição científica que afirma ser incolor (sem cor), insípida (sem sabor) e inodora (sem cheiro). Estava ali o bálsamo pretendido, o néctar tão desejado.
Ao passar pela janela, a mulher fez jorrar, com naturalidade, uma cusparada enegrecida, num jato certeiro em direção ao oitão. Voltando-se e agora vendo mais claramente o rosto do jovem sedento, com o olhar meio assustado, ela esboçou um sorriso. A visão apreendida pelo rapaz era estarrecedora. O conjunto boca-lábios-dentes da mulher, agora bem à mostra, enojou-o. No canto da boca, um naco de fumo… Arrependeu-se de ter ido até ali… mas a sede advertiu-o: – Ainda estou aqui!
Rendeu-se. Recolheu, agradecido, o copo com algumas amassaduras. Olhou o conteúdo: um líquido espesso e de cor turva. Processou, rapidamente: água de barreiro. Olhou para a mulher. Um novo sorriso. O estômago embrulhou de vez. Pensou em jogar o líquido fora. Mas seria uma desconsideração ante o gesto de acolhimento daquela sofrida mulher. Decidiu tomar a água. Deu uma girada de 45 graus no copo, fechou os olhos e encostou os lábios na borda, exatamente à altura da alça… certamente aquele seria o espaço de menor ou nenhum contato de outro ser vivo. Sorveu apressadamente todo o líquido. Arrepiou-se. O corpo todo tremeu. Sentiu-se em outro mundo. Viajou.
Uma voz feminina trouxe-o novamente de volta ao mundo dos mortais:
– Interessante… O senhor é igual a mim. Eu só tomo nesse “cantim”…