“A incerteza é sempre a precursora da mudança radical; a transformação é sempre precedida pela revolta e pelo medo. Peço que tenham fé na capacidade humana para a criatividade e o amor, porque essas duas forças, quando combinadas, têm o poder de iluminar as trevas.” *
E tudo mudou. Os tempos são outros. O comportamento humano já não é mais o mesmo. Nas últimas décadas, o vertiginoso avanço tecnológico parece estar contribuindo para a passagem do “homo sapiens” – versão do que ainda somos?! – para o “homo technus” – versão do que ainda seremos?! –, sem que haja destruição ou extinção, apenas absorção. Já vivenciamos a era “Technium”, essencialmente virtual, quando, embora conectados a inúmeros, incontáveis iguais, agentes, nós e eles, de uma realidade que reverbera, repercute, reflete ao nosso entorno as naturais circunstâncias da nossa recente existência, submetemo-nos à solidão silenciosa, à reclusão aparentemente libertadora (para nós!) e egocêntrica (para alguns outros), sob o império do nosso “eu” tecnológico em arrebatamento ante as mais sofisticadas invenções geniais – celular, smartphone, o trio dos “is” (pronuncie “ais”), por exemplo – que, silenciosamente, nos propõem o tão desejado dom da ubiquidade(1), próprio dos deuses. E as velhas conversas, olho no olho, perdem, sem que percebamos, espaço para os posts, os memes, as selfies, os SMS – ou serviços de mensagens curtas –, sem falar em outros meios, como o WhatsApp, o mais popular deles. Será que estamos, diligente leitor(a), antecipando o “admirável mundo novo”, a visão futurista, intrigante e perturbadora do ensaísta e escritor visionário inglês Aldous Huxley, ainda nos primórdios do século passado?!
Essa questão instigava, sensível e profundamente, a jovem cientista social, exortando-a ao aprofundamento criterioso da pesquisa em que assentaria a elaboração textual de sua tese de doutoramento, a ser submetida à apreciação crítica de renomados estudiosos do comportamento humano, no geral, e dos relacionamentos interpessoais, em recorte bem específico. Até onde a parafernália eletrônica e telemática nos liberta ou nos escraviza? Até onde provoca em nós ganhos de evolução ou perdas de involução? Até onde nos proporciona dulcificantes momentos de prazer ou nos causa medonhos estados de angústia?
O eminente orientador sugeriu que ambos assistissem à palestra oferecida por empresa multinacional da área de processadores eletrônicos, a ser proferida pelo seu mais novo vice-presidente para negócios corporativos no Brasil, brasileiro com formação acadêmica no Massachusetts Institute of Technology – MIT, com desempenho reconhecido internacionalmente, autor de várias obras de referência, respeitável defensor de ideias revolucionárias que costumam encantar – e amedrontar, também – os luminares da Ciência no mundo, além de especialista com livre trânsito pelas novas tecnologias, tais como a cibernética, a inteligência sintética, a criogenia(2), a engenharia molecular, a realidade virtual.
Convenceu-a, com alguma insistência, arrimando-se em argumentação que, aos poucos, destruía a redoma contestatória com que se protegia a orientanda, uma arguta jovem de apenas 25 anos, para quem, a princípio, o evento nada acrescentaria ao delineamento do seu entendimento crítico sobre o tema que norteava a sua tese – basicamente, “as perspectivas dos processos evolutivos do comportamento humano, em face da virtualização dos relacionamentos interpessoais” –, o que suscitava uma questão central: é possível traçar o perfil do homem que habitará o planeta Terra daqui a cinco décadas, considerada, inclusive, a espantosa velocidade com que se dão as mudanças?
Já no primeiro contato do palestrante com o seleto público, ela se assustou. Ao referir-se às suas origens sob o sol causticante e sobre a terra esturricada do sertão cearense, enalteceu a importância da família – gente simples, mas destemida e generosa – para o seu crescimento pessoal. Embora o nome dele revelasse a possibilidade – remota que fosse – de alguma aproximação com a sua ascendência mais próxima, isso nada nela havia despertado, até então. Perturbou-a – e muito! – a imagem em movimento que seus olhos atentos e perscrutadores capturaram. O todo facial, as expressões corporais, o jeito de andar, de falar, de quase não sorrir, de cofiar o bigode enquanto aparentava pensar, tudo isso trazia à mente da filha a imagem do pai. Pensou, então: “Se fossem irmãos, não se pareciam tanto”.
Sentiu ser invadida por uma avalanche de lembranças, de experiências vividas há algum tempo, de redemoinhos que tão profundamente revolveram as bases fundamentais da sua vida, intervieram no seu trajeto existencial, modificando-o sensivelmente. A inesperada separação dos pais, aparentemente consensual, embora envolta em muita dor e naturais incompreensões, pôs fim a uma parceria que sempre apostou na eternidade; ali, agora, emergia da memória sensitiva a explicação que o pai então lhe dera, em momento tão crucial: “Filha minha, quando o amor acaba, quando a desconfiança preenche os desvãos da alma, manter a união conjugal pode ser um sacrifício além da nossa capacidade de submissão. Sua mãe permanecerá sendo o seu porto seguro. Seu pai continuará sendo o senhor das estradas e das ausências. Levarei você no meu coração. Sempre!”. De repente, desbordaram da memória outras imagens terríficas: a sinuosa curva de uma bem cuidada rodovia federal, o acentuado declive marginal, o piso asfáltico escorregadio em face das chuvas, o inevitável tombamento da carga, enfim, o fatídico desastre que ceifara a vida dele, tão jovem ainda; o curtíssimo período de solidão sugeriu o cometimento de ato deliberado; as mensagens gravadas no celular, por ela recuperadas, robusteceram essa versão jamais oficialmente confirmada, mas por ela guardada em mais completo sigilo – segredo pessoal, inviolável.
“Oh, adeus! Adeus ao corcel relinchante e à trombeta estridente, ao tambor que nos excita à luta, ao pífano que nos abala o tímpano, adeus ao estandarte real, e a todos os atributos, orgulho, pompa e circunstância das gloriosas guerras! (…) A função de Otelo perde o sentido.” **
Outros fatos cruciais daí decorreram: a venda da casa, em cujo piso engatinhara, guardadora de memórias – as primeiras falas, os primeiros passos, a infância, os sorrisos, os choros, os sonhos, as ilusões, as decepções, os questionamentos, o aprendizado na escola da vida, as descobertas, a adolescência, a juventude, os amores, os dissabores –, a mudança para a efervescência paulistana, sob as bênçãos e cuidados da mãe, a formação acadêmica, a curiosidade por desvendamentos de mistérios extremamente humanos. Agora, estava ali, num requintado auditório, em meio a pessoas de reconhecidos prestígio e influência, ouvindo um festejado homem do futuro que, em tudo, lembrava o seu amoroso pai, já falecido… e, mais uma vez, uma questão específica e recorrente a atormentou: “Por que sua mãe houvera traído o seu pai?!”.
Não percebeu que a palestra já se encerrara. O jovem “senhor das novas tecnologias” agora respondia as perguntas selecionadas pelos seus assessores. Uma bela e sorridente moça veio até ela e, sob olhares indiscretos, entregou-lhe um pequeno envelope. Um convite. De quem? Dele, a mais perfeita cópia do pai! Pedia-lhe que com ele partilhasse um aperitivo, no bar do hotel, tão logo o evento fosse dado por concluído, comprometendo-se a devolvê-la ao convívio da família, sã e salva. Consultou o seu orientador, sentado ao lado, que a estimulou não apenas a aceitar o convite, mas a aproveitar do ensejo e dele extrair indicações que pudessem enriquecer a sua pesquisa e a sua produção acadêmica.
Ao recepcionar a jovem pesquisadora, o “senhor do futuro” declarou haver recebido do orientador dela o seu projeto de pesquisa, cuja leitura o estimulou a oferecer o apoio que se mostrasse necessário. Desde já, garantia uma substanciosa bolsa de estudos, ou seja, o patrocínio financeiro da empresa que ora presidia, cujas portas estariam abertas para ela, que, dizendo-se agradecida, aceitou os incentivos, garantindo-lhe que tudo faria para não o decepcionar. Confessou, então, que precisava desvendar o que, naquele momento, parecia um mistério familiar. Após a aquiescência dele, nervosamente expôs o que sentia:
– As suas origens, o seu nome de família e, principalmente, a parecença com meu saudoso pai me fizeram pensar que…
Pedindo desculpas, ele a interrompeu:
– … que eu sou seu parente. E sou. Sou irmão do seu pai. Um dia, a pedido de nossa mãe, sua avó, ele me tirou do sertão, que pouco ou nada me oferecia. Abriu as portas da sua casa e generosamente me acolheu. Cresci, sob a tutela dele e o zelo da sua mãe. Até que um ato irresponsável meu ejetou-me para outros universos.
– E o senhor desapareceu, sem deixar rastros…
– Eu tinha de pagar pelo erro cometido.
– E o que de tão grave o senhor cometeu para agir dessa forma?
– Você me promete sigilo absoluto?
– Sim!
– Alguém já disse que “o amor não é escolha nossa”. Eu me descobri apaixonado pela minha cunhada. Amor que acabou sendo correspondido. Amor que jamais pôde ser substituído. Aprendi, em relação ao amor e com a experiência então vivenciada, que não podemos fabricá-lo por encomenda, nem esmagá-lo quando ele aparece. Eu traí o meu irmão. Jamais me imaginei merecedor do perdão dele. Optei por fugir.
– Sigilo também eu exijo do senhor. Meu pai morreu tão logo soube da traição, após desconfiar da paternidade e confirmar em exames laboratoriais ser estéril. Mensagens gravadas no celular dele e por mim recuperadas revelaram que alguém o advertira sobre essas coisas. Meus pais se separaram e, pouco tempo depois, ele perdeu a vida em desastre cujas causas ainda não me convenceram de ter sido um acidente.
– Então, eu devo ser o seu pai biológico.
Silêncio absoluto. Os olhos de ambos umedeceram. Ela sentiu na suave pele do rosto a ardência de uma cálida lágrima.
Levantaram-se. Um afetuoso abraço sugeriu que uma nova relação extremamente humana ali se iniciava.
Notas do autor:
* Excerto de fala do futurólogo e bilionário Edmond Kirsch, personagem de “previsões audaciosas e invenções de alta tecnologia”, em ORIGEM, de Dan Brown; tradução de Alves Calado. São Paulo: Arqueiro, 2017; pág. 385.
** Excerto de fala do “nobre mouro a serviço do Estado de Veneza”, em OTELO, de William Shakespeare; tradução de Beatriz Viégas-Faria. Porto Alegre: L&PM, 2009 (Coleção L&PM POCKET); pág. 95.
¹ Ubiquidade. Excesso de rapidez e facilidade com as quais se consegue dominar um espaço relativamente grande. Onipresença; capacidade divina de estar, ao mesmo tempo, em todos os lugares.
² Criogenia. Produção de baixas temperaturas que permitem, entre outras coisas, hibernação dos seres vivos por longo tempo.