Réquiem tardio para um sistema partidário, por Filomeno Moraes

A “Folha de São Paulo”, no último dia 28, reproduziu, em fac-símile, capa publicada em 28 de outubro de 1965, com a seguinte manchete: “País recebe tranquilo Ato Institucional nº 2”. Diz a matéria que “o presidente Castello Branco promulgou [sic] nesta quarta (27) o Ato Institucional nº 2, que dá ao Chefe do Executivo poderes praticamente ilimitados”, decretando, entre as medidas impactantes, a extinção dos partidos políticos, a reforma do Legislativo e do Judiciário, eleições indiretas para presidente em 1966 e julgamento de civis pela Justiça Militar. Apesar de tudo, ainda segundo o jornal, “pegas de surpresa pela extinção dos partidos, lideranças políticas não esboçaram oposição. O Judiciário também não entrou em atrito com o governo. Das classes produtoras do país, o presidente recebeu mensagens de apoio”.

Na verdade, o AI-2 significava a marcha batida para a ditadura escancarada, sob olhar ou sob o aplauso bestializados – não do povo, como no alvorecer da República, segundo a expressão de Aristides Lobo – mas, há cinquenta anos, das elites da sociedade e do Estado brasileiros, inclusive do próprio jornal, como revela a manchete aludida. Extintos os partidos existentes e cancelados os seus registros, o Ato Complementar nº 4, de 20 de novembro de 1965, na esteira do AI-2, dispôs sobre a criação, por membros do Congresso Nacional, de organizações com “atribuições de partidos políticos, enquanto estes não se constituem”. Ao fim e ao cabo, a legislação autoritária, motivada pelas pressões da “linha-dura” militar e civil, significou o assassinato, multiplamente qualificado, de um sistema partidário em franco processo de institucionalização.

Cumpre ressaltar que, ao todo, de 1822 até agora, o Brasil registrou sete formações partidárias. Teve-se: 1. liberais versus conservadores, de 1837 até a proclamação da República, em 1889; 2. partidos estaduais (“republicanos”), na Primeira República; 3. um pluripartidarismo embrionário (polarizado nos extremos pelos movimentos integralista e comunista). Em 1937, com a inauguração do Estado Novo, acabou-se com os partidos políticos. No período compreendido entre a redemocratização pós-Estado Novo e os nossos dias, vivenciou-se mais quatro formações partidárias, a saber, 1. um pluripartidarismo que vai de 1945 até a sua extinção pelo AI-2, em 1965; 2. um bipartidarismo tutelado (ARENA versus MDB) no âmbito do regime militar, de 1965 a 1979; 3. o retorno controlado ao pluripartidarismo através da reforma partidária de 1979, apresentando como principais organizações o PDS e o PMDB, sucessores, respectivamente, da ARENA e do MDB, até 1985; 4. a ampliação do espectro pluripartidário a partir da Emenda Constitucional nº 25, de 1985, que permitiu inclusive a legalização dos partidos comunistas e revogou restrições à constituição de novos partidos, com evolução até o momento.

Como apontam idôneas análises daquela conjuntura, a partir de 1945, combinavam-se a ampliação da franquia eleitoral, a nacionalização dos partidos políticos e a urbanização, que emancipava social e politicamente grupos populacionais substantivos, ou sejam, desenvolviam-se as condições que poderiam ter definido clivagens políticas fundamentais para o desenvolvimento do mercado político. E o sistema partidário, que chegou a treze partidos, era altamente fragmentado somente do ponto de vista institucional-legal, dado que os partidos relevantes compunham um número bem menor do que o número de legendas existentes. Em suma, tal sistema partidário-eleitoral, às vésperas do seu final, constituía-se num sistema bem complexo e em verdadeiro processo de consolidação, caracterizadamente um processo heterogêneo, com alguns obstáculos sérios, em especial no campo da legislação eleitoral e partidária, que apresentava, contudo, sinais muito expressivos de institucionalização.

Em 1965, o AI-2 não apenas sepultou a bem-sucedida experiência partidária nascida vinte anos antes. De fato, talvez tenha desperdiçado a última a oportunidade de configuração de um sistema partidário democrático, pluralista e moderno no Brasil.

Filomeno Moraes

Cientista Político. Doutor em Direito (USP). Livre-Docente em Ciência Política (UECE). Estágio pós-doutoral pela Universidade de Valência (Espanha). Publicou os livros “Estado, constituição e instituições políticas: aproximações a propósito da reforma política brasileira” (Belo Horizonte: Arraes Editores, 2021) e “A ‘outra’ Independência a partir do Ceará: apontamentos para a história do nascente constitucionalismo brasileiro” (Fortaleza: Edições UFC, 2022), e o e-book “Crônica do processo político-constitucional brasileiro (2018-2022).” (Fortaleza: Edições Inesp, 2022).

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Filomeno Moraes

Cientista Político. Doutor em Direito (USP). Livre-Docente em Ciência Política (UECE). Estágio pós-doutoral pela Universidade de Valência (Espanha). Publicou os livros “Estado, constituição e instituições políticas: aproximações a propósito da reforma política brasileira” (Belo Horizonte: Arraes Editores, 2021) e “A ‘outra’ Independência a partir do Ceará: apontamentos para a história do nascente constitucionalismo brasileiro” (Fortaleza: Edições UFC, 2022), e o e-book “Crônica do processo político-constitucional brasileiro (2018-2022).” (Fortaleza: Edições Inesp, 2022).