Por um triz – Parte II – por Francisco Luciano Gonçalves Moreira (Xykolu)

“Jadway… o personagem que no fim foi o que Cathleen havia levado para a cama para amar e que conseguiu amá-la naqueles sete minutos místicos.” [Irving Wallace, em Os sete minutos. São Paulo: Círculo do Livro, s/data; pág. 529].

A ele cabia seguir algumas instruções: estacionar o carro em área fronteiriça à do condomínio, porquanto o dela iria ocupar a vaga no estacionamento do subsolo; aguardar uns dez minutos; após isso, apresentar-se na portaria, dizendo que precisava entregar uma encomenda à senhora Ivna, a da cobertura. O porteiro iria interfonar e ela, então, autorizaria a subida dele.

E assim ele fez. Teve uma sensação estranha – mas passageira – quando ouviu a voz de Ivna: Certo, “seu” Pedro. Pode liberar. Ele é meu irmão. Caminhou, então, até a área dos elevadores, acionou o botão, e aguardou. Quando quis repensar os motivos que o levaram até ali, ouviu o barulho de porta se abrindo. Como um autômato, entrou no elevador vazio. Apertou o botão C, de “cobertura”, e deixou-se conduzir pela aventura, apesar da questão que lhe martelava as caraminholas: por que “ele é meu irmão”?!

No apartamento, recepcionou-o uma Ivna diferente. Protegida pelo felpudo roupão de saída de banho branco, os cabelos escondidos em touca de mesma cor, os pés descalços, ela o convidou a entrar com um sorriso extremamente cativante.

– Desculpe-me por recebê-lo assim… imaginei que dez minutos fossem suficientes… mas você já deve saber como é mulher… sempre tem algo mais a fazer…

– Não se preocupe comigo, Ivna. Aqui está Proteu…

– Calma, Lê! Eu quero apresentar você à nossa estante de livros. Venha cá, ao escritório…

E Leandro se encantou com o que viu. Prateleiras repletas de livros encobriam três das quatro paredes do ambiente climatizado e de boa iluminação. Ao centro, uma mesa de madeira circular e algumas confortáveis cadeiras. Na parede sem prateleiras, pendia um pôster panorâmico, de 40×50, com foto da família – pai, mãe e um belo par de jovens – numa mais que perfeita combinação de alegres rostos.

Quebrou-lhe o encantamento a voz suave de Ivna.

– Lê, fique à vontade. Sinta-se em casa. Vou-me trocar.

Ele abandonou o Proteu no meio da mesa e pôs-se a venerar as obras que compunham tão rico e eclético acervo. Recolheu algumas, folheou-as, leu alguns trechos. Viajou… para destinos vários.

Mais uma vez, a doce voz de Ivna fê-lo retornar à realidade.

– Lê! Venha cá, por favor!

E o jovem seguiu instintivamente em direção ao lugar de onde viera o chamado da amiga. O quarto do casal. A alcova à meia luz. O choque com a realidade perturbou-o, impondo-lhe uma sensação de quase cegueira. Muito pouco viu além do que lhe pareceu ser um convite ao pecado. Ante o inesperado da situação, extasiou-se. Mas foi capaz de ouvir uma mulher singular, de encantos apreciáveis e meiguice à flor da pele, deitada de costas, com vestes sedutoras e em pose sensual, e ardendo “como fogo numa pilha de serragem”:

– Vem, amigo meu! Vamos juntos vivenciar os nossos cálidos “sete minutos”… Assuma o Jadway que dormita em você e faça de mim a sua Cathleen…

Os seus incrédulos olhos recolheram a imagem de um livro solitário, repousado sobre o criado mudo e sob a frouxa luz de um abajur cor de sangue: Os sete minutos.

– Não posso, amiga – respondeu com voz embargada.

– Não me frustre assim, Lê. Meu marido e meus filhos já foram para a nossa casa de praia. Já é carnaval, amor! Estamos a sós, aqui. Aproveitemos o que de bom podemos oferecer um ao outro.

Ele percebeu o risco da aventura e pressentiu que o pior poderia ocorrer:

– Não tenho esse direito, Iv. Não tenho o direito de trair meus princípios. Não posso repetir o desvario do meu pai que mantinha, às escondidas, relações extraconjugais com uma mulher casada, cujo marido, ao surpreendê-los em plena esbórnia, matou-os a tiros de revólver, reservando um projétil para pôr fim à sua agora ultrajada vida. Seria estupidez de minha parte fazer tabula rasa desse fato, que impingiu, no mais profundo recanto do meu ser, marcas cruciais, dolorosas e, por isso, indeléveis. Perdoe-me, amiga querida. Por favor, esqueçamos tudo isso… os livros… este momento… estes desejos… minha presença aqui. Vá divertir-se no seu merecido carnaval particular. Eu lhe prometo que, após as cinzas, conversaremos. Até mais, amiga!

Entre perplexo e sereno, iniciou a fuga ao que tão graciosamente lhe oferecera Vênus em seu tão sedutor altar. Ao aproximar-se da porta de saída, lembrou-se de Proteu. Apressou-se em recuperá-lo. Ao voltar do escritório, deparou com Ivna, já recomposta e com olhar de decepção e vergonha. Ela lhe abriu a porta. Cumprimentou-a severamente, encaminhando-se para o elevador que, vazio, logo se lhe pôs à disposição. Sem olhar para trás, sem ouvir qualquer som que denunciasse a presença de quem quer que seja, entrou naquele cubículo e, visualizando de viés a botoeira, acionou o último botão.

Curto foi o tempo da descida. Tão logo a porta se abriu, assustou-se com a visão imediata: um senhor de cabelos grisalhos e bigode bem cuidado, com os braços sobre os ombros de um belo casal de pré-adolescentes. Justificou-se, esforçando-se por disfarçar o atordoamento:

– Acho que apertei o botão errado… devia ter sido o T, de térreo…

Os três entraram em silêncio. Deram-lhe o tratamento de “estranho”. O adulto apôs o longo dedo indicador no botão C, de “cobertura”. Os jovens novamente se aninharam sob os braços protetores do pai. Remexeu-se em sua prodigiosa memória visual o conjunto de rostos sorridentes do pôster do escritório. O marido de Ivna… era ele, sim. Sentiu calafrios. Num lapso temporal, a porta do elevador se abriu, e ele cuidou de escapar da atordoante clausura, saltando para o salvador espaço de fuga. Até que enfim, só!

Ao sentar-se ao volante do fusca bege, sentiu-se invadido por um alívio revivificante. Ufa!

Quase se metera numa homérica confusão, da qual certamente não sairia incólume, para o desespero de sua mãe que certamente não resistiria à repetição de tão nefasto revés.

Salvara-se, sim. Por um triz!

Francisco Luciano Gonçalves Moreira (Xykolu)

Graduado em Letras, ex-professor, servidor público federal aposentado.

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Graduado em Letras, ex-professor, servidor público federal aposentado.