O que seria da rosa, se não desabrochassem tantas outras odoríferas flores?
O que seria dos amantes, se não professássemos outros prazerosos amores?
O que seria do alívio, se não nos afetassem indesejadas e perturbativas dores?
O que seria do perfume, se não nos incomodassem fétidos ou pútridos odores?
E da maçã edênica, se o amor não reverberasse entre obsequiosos pecadores?
E do favo de mel, da uva em cacho, se não nos permitíssemos outros sabores?
E do cinza ou do marrom, se não produzíssemos outras múltiplas belas-cores?
E dos poetas imortais, se não efervescesse a criatividade dos geniais prosadores?
Então, por que destruir a vida, se nada nos custa ser seus impávidos construtores?!
[Xykolu, em Outros louvores]
Dizem que, num futuro não muito longínquo, a Terra terá o domínio exclusivo das baratas, das formigas e dos ratos.
E eu acrescento: e dos pichadores. Pela razão que os fazem agir e pelo modus operandi que adotam, acredito sejam eles os únicos humanos capazes de enfrentar o caos que então envolverá o planeta. Exagero à parte.
Há algum tempo, pichadores entenderam de expor sua “desarte” nos muros do Cantinho Maluju [o meu paraíso terreal, de onde, numa versão adâmica modernosa, ora sinto-me expulso]. Não vejo nada de beleza, muito menos de criatividade, no que fizeram: garranchos e garatujas cuja lógica a minha inteligência insiste em se mostrar incapaz de decifrar.
No muro fronteiriço à entrada do sítio, um deles achou de fazer um registro legível. Pichou – nem imagino por quê – um sintagma nominal (substantivo e adjetivo) entremeado por uma figura – um “g” minúsculo de revés – que lembra a décima sétima letra do alfabeto grego [o “rô” minúsculo]. Está lá, a olhos vistos: GOTA CRUEL.
A mensagem sugere leituras diversas, dependendo do referencial que o leitor eleja como aplicável ao entendimento que pretenda alcançar: água, lágrima, doença…
O efeito em mim levou-me, de imediato, à lembrança do conto, de Moreira Campos, intitulado A GOTA DELIRANTE (em Dizem que os cães veem coisas, 3ª edição, São Paulo: Maltese, 1995, págs. 47-50). E estimulou-me a versejar: um “eu” qualquer, vagando por uma rua deserta, numa noite de lua, sujeito a… é melhor ver o resultado disso. Deleitem-se, pois, meus amáveis leitores.
E…
… no deslumbramento lírico, romântico, poético d’um’argêntea noite de lua;
taciturno, solitário e vazio, eu vagueio a esmo pela mesma e sempre rua:
silenciosa, cúmplice, enigmática, fria, única e deserticamente nua…
ainda impregnada na retina – saudades! – a última bela imagem tua.
Em meio a tantas outras que cintilam no límpido e imenso azul do céu,
o realce d’uma estrela a espargir um intenso brilho que mais parece véu…
Surpreendo-me com a oferenda edênica do portal do Amor: maçã e mel!
Ela: escultural, sensual, insinuante, provocativa, irresistível. [Ato infiel!].
[Ah!] Traio.
[Oh!] Liquefaço-me!
[Ah!] Reproduzo-me!
[Oh!] Arrependo-me!
Gota
cru
el
!
Francisco Luciano Gonçalves Moreira
ADENDOS
I – E o que seria das escrituras e dos escritores, sem a antropofagia* de anônimos leitores?
[* Rubem Alves, em UM RITUAL ANTROPOFÁGICO, reescreve excerto da lavra do escritor mineiro Murilo Mendes, em A HORA DO SERROTE: “No tempo em que eu não era antropófago – no tempo em que eu não devorava livros – pois os livros não são feitos com a carne e o sangue dos que escrevem?”. E, mais adiante, o educador e também escritor mineiro sintetiza, sob esse prisma, o seu conceito de “leitura”: “o objetivo da antropofagia não é gastronômico, é mágico…” ].
II – A estética dos grafiteiros é a expressão de arte em contraste com o vandalismo inconsequente dos pichadores. Embora uns e outros consigam, a seus modos, expor a essência que carregam n’alma.