“O sono da razão produz monstros”.
Francisco de Goya.
Lembro-me de que, quando criança, eu tinha sido tomada por uma forte impressão após a visão de uma pintura do espanhol Francisco de Goya (1746-1828). A pintura em questão é “Saturno devorando seu filho” e é realmente uma imagem muito forte, aterrorizante, com um gigante arrancando com os dentes os pedaços de um corpo humano. Recordo ainda que na época senti uma espécie de compaixão pelo “monstro”. Minha percepção captou no olhar arregalado de Saturno uma mistura de horror e angústia, como se a refeição realizada fosse fruto de uma pena severa e não obra de um farto apetite.
Mais tarde, quando comecei a ter interesse por arte, reencontrei a imagem da pintura de Goya e novamente fiquei impressionada com sua carga dramática, o que me levou ao estudo dos mitos gregos com o propósito de compreender mais amplamente o teor da narrativa contida nesta e em outras obras de arte que adotavam a mitologia como ponto de partida representativo.
Saturno é o nome romano de Cronos, o representante mítico do tempo para os gregos antigos. Cronos é da linhagem dos Titãs e é o filho caçula de Gaia (Terra) e Urano (Céu). Por qual motivo Cronos devorava os filhos? Como já falei acima, Cronos é o filho caçula de Gaia e Urano, que já tinham tido onze Titãs antes de Cronos, além de três Ciclopes e três outros seres muito estranhos chamados Cem-braços. Quero ressaltar que neste momento da mitologia ainda não existe tempo nem espaço e a história que agora revisitamos trata-se, portanto, de uma narrativa de origem. Nesse sentido, Urano cobria Gaia sem cessar e estava colado a ela como uma segunda pele, sem permitir que os filhos gerados saíssem do ventre da mãe. Isso incomodava Gaia imensamente, assim como aos filhos que estavam prisioneiros, inclusive Cronos. Foi então que, para por um fim a esta situação angustiante, Gaia entrega uma foice a Cronos e ordena que ele corte fora o sexo do pai. E ele assim o faz, castrando Urano.
Tomado por uma dor lancinante, Urano solta Gaia, refugiando-se no alto e liberando o espaço entre o céu e a terra. Desta forma, o espaço é criado pela separação traumática de Gaia e Urano, assim como o tempo, pelo movimento dos filhos que agora puderam, enfim, realmente sair do ventre materno, dando início às gerações.
Finalmente chegamos à imagem da obra de Goya. Cronos casa com a irmã, a titânida Reia, e com ela também gera filhos. Mas essa história familiar é abalada pelos fantasmas do passado, pois Cronos não esqueceu o que ele causou ao pai, passando a temer o próprio destino. “Cronos toma consciência desse fato indiscutível: a história é cheia de perigos, e para quem quiser manter o que adquiriu, garantir seu poder, mais vale aboli-la, para que nada mude” (FERRY, 2009, p.56). Para evitar a concretização do perigo latente – que os filhos repitam o que ele fez ao pai, Cronos decide drasticamente: comerá os próprios filhos! E ele os devora ainda em tenra idade, antes que alcancem a altura de seus joelhos. Obviamente essa cruel comilança causa revolta na mãe das crianças, e Reia irá repetir o feito de Gaia, aliando-se ao filho mais novo – Zeus, para retirar o poder do pai. Tudo isso culminará numa guerra violentíssima contra os Titãs, da qual Zeus e seus irmãos sairão vencedores, dando início a um novo ciclo da mitologia, agora comandado pelos Olímpicos, elite de deuses da qual Zeus possui o poder supremo.
Outras narrativas estão entrelaçadas ao breve resumo que fiz acima, inclusive o surgimento de divindades como Afrodite, a deusa da beleza, a partir da castração de Urano, por exemplo. Tratarei desta e de outras aventuras da mitologia grega em textos futuros. No presente, quero ainda pensar um pouco mais sobre a representação que Goya fez, mais especificamente na expressão dos olhos de Cronos.
“Saturno devorando um filho” integra um conjunto de obras que Goya realizou no final da vida, nas paredes de sua casa em Quinta Del Sorto, numa série batizada como “Pinturas negras”. O nome se deve não somente à paleta escura utilizada, mas também ao estranhamento na seleção e composição dos temas. Estas obras estão atualmente no acervo do museu do Prado. Nessa época o artista estava com a saúde debilitada e o espírito desesperançado. Viveu períodos turbulentos, com inúmeras cenas de violência e degradação humana. Goya foi contemporâneo da invasão das tropas de Napoleão e o horror do massacre foi representado na famosa obra “Três de maio de 1808 em Madrid”.
O grupo de soldados está prestes a executar mais um conjunto de homens desarmados. O destino que os aguarda é anunciado não somente pelas armas apontadas, mas pelo grupo que jaz ao lado em poças de sangue. Outro grupo pranteia a consciência do fim iminente. Muitos escondem os olhos para não ver o horror da morte, enquanto outros realizam fervorosamente uma última prece, agarrados em algum fio de esperança resistente. O jogo de luz, habilmente centralizado no mártir com a camisa branca, permite o ápice da dramaticidade da pintura, pois os braços abertos, os olhos que encaram e as mãos com estigmas direcionam à relação com a crucificação.
Presenciar os horrores de sua época sem desviar o olhar fez de Goya um contemporâneo de seu tempo, no sentido de não se encaixar em suas exigências de normatização. Giorgio Agamben, puxando um argumento de Nietzsche, fala acerca do sentido desta contemporaneidade:
É, assim, uma relação singular com o próprio tempo, que adere a ele e, ao mesmo tempo, toma distância dele; mais precisamente, essa é a relação com o tempo que adere a ele através de uma dissociação e de um anacronismo. Aqueles que coincidem muito plenamente com a época, que se ligam em todos os pontos perfeitamente com ela, não são contemporâneos porque, exatamente por isso, não conseguem vê-la, não podem manter fixo o olhar sobre ela (AGAMBEN, 2014, p. 23)
Os olhos de Cronos na pintura podem representar o olhar dos tormentos de Goya diante das trevas de seu tempo, que engole impiedosamente seus filhos. Por outro lado, podemos atualizar esse tempo e pensar em nossa contemporaneidade, sobre como devemos agir diante de um tempo que inescapavelmente é o nosso, mas que devemos aprender a tomar alguma distância dele, para que ele não nos devore, mas sem deixar de efetivamente vê-lo. A condição de ver o tempo é fundamental também para abrir “espaço”. É a visão real do tempo que cria o distanciamento, e é somente assim que se abre um caminho, com o cultivo da sensibilidade de um olhar que vê no céu noturno tanto a escuridão quanto o brilho das estrelas.
Referências bibliográficas:
AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo? Nudez. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2014.
FERRY, Luc. A sabedoria dos mitos gregos: aprender a viver II. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.