O cinema de Michael Haneke tem um ar escatológico difícil de ser desconsiderado. E desde o final dos anos 1970 o realizador austríaco assina uma cinematografia que, sem exageros, pode ser considerada como umas das mais influentes do nosso cinema contemporâneo. E desse traço forte, que contorna estórias de áurea muito precisa e viscerais, é que ele dá forma a uma obra que parece na maioria das vezes e quase num trabalho de investigação incessante, estar ansiando por o humano em cheque. Desse desejo é que surgem filmes como Tempo do Lobo (2003).
No longa, Anna (Isabelle Huppert) vai passar período na casa de férias com seu esposo e filhos. Ao chegar no local, a família encontra a residência ocupada por uma outra família. Esse encontro, entretanto, é apenas o início de um doloroso processo de aprendizado que ela ao lado dos filhos Eva (Anais Demounstier) e Benny (Lucas Biscombe) terão de enfrentar.
Pensado como uma fábula, O Tempo do Lobo segue uma longa lista de obras que unidas, formam um rico mosaico contextual de um fazer cinematográfico iminentemente dialético. Que nos questiona e se questiona em forma e sentido. E falar dessa união é apontar uma construção artística que segue uma linha onde os limites do humano são verificados acima de qualquer clichê que o dispositivo fílmico opera.
Ou seja, para trabalhar a ideia de um futuro distópico, ele faz uso de uma série de elementos como a escassez de recursos e paisagens inóspitas, mas esses códigos, entretanto, são apenas pano de fundo para o escopo que a narrativa nos apresenta. Porque quando Anna sai de sua própria propriedade minutos depois de chegar, ela vai aos poucos avançando por sobre um território que se revela aos seus olhos (assim como aos nossos também).
Um espaço que, na verdade, vai se desenhando muito parcimoniosamente não para nos dar a ver uma construção cênica ancorada tão simplesmente no afã de se mostrar imagens que apenas servem de apêndice à trama que a estória conta. Aqui, Haneke se coloca no total controle do enredo que conta para nos dar a ver e nos convidar a fabularmos, junto dele, como seria o fim do mundo no tempo de hoje em que nos inserimos.
Essa reflexão carrega em sua gênese um poderoso gatilho que aponta o cinema como um exercício crítico da contemporaneidade. Já que o escopo que uma obra como O Tempo do Lobo nos apresenta irremediavelmente nos induz ao pensamento acerca dos caminhos que nossa sociedade tem adotado.
O filme irrompe o campo da representação, ou melhor, o potencializa através da problematização de um mal estar que parece se avizinhar quando olhamos para a conjuntura sócio política em todo o globo hoje. Em 2003, Haneke olha por meio de uma lupa em forma de bússola para as trilhas que a sociedade das próximas décadas pode vir a tomar.
A indiferença, o medo, o desprezo e a insegurança são parte da teia conceitual a qual o diretor toma para tecer sua narrativa. Mas sua intenção final, pelas razões pontuadas anteriormente, sugere uma assimilação nossa, enquanto espectadores, ao redor dos problemas e desafios que o futuro nos reserva.
Uma vez que falar de Tempo do Lobo é também pontuar cada um dos 13 longas metragens dirigidos por Michael Haneke. É refletir esse cinema que por meio de toda a sua frieza e genialidade em forma e sentido nos aproxima cada vez mais de tudo aquilo o que temos de potencialidades mas também de fragilidades enquanto humanos. Desses seres que sozinhos, só podem contar uns com os outros para a efetividade da sua existência.
FICHA TÉCNICA
Título Original: Le Temps du Loup
Tempo de Duração: 112 minutos
Ano de Lançamento (França): 2003
Gênero: Drama
Direção: Michael Haneke