“Penso que o que estamos procurando é uma experiência de estarmos vivos”.
Joseph Campbell.
“Se vocês me derem seu tempo eu lhes darei uma experiência”. É com estas palavras com conteúdo de pedido e promessa que a artista Marina Abramovic conclui o convite que faz ao público brasileiro para participar da exposição retrospectiva “Terra Comunal – Marina Abramovic + MAI”. A mostra reúne trabalhos de Abramovic ao longo de quarenta anos de trajetória artística, como também possibilita ao público (mediante inscrição prévia) a experiência de imersão por duas horas e meia no “Método Abramovic”. Em cartaz desde o dia dez de março, “Terra Comunal – Marina Abramovic + MAI”, está acontecendo no Sesc Pompéia, em São Paulo, até o próximo dia dez de maio.
Tempo e experiência. Palavras que ampliam o território da imaginação e ramificam sentidos. Em Terra Comunal Abramovic problematiza e instiga um olhar para o manejo do tempo na contemporaneidade, para as contradições do império da velocidade e virtualização do mundo. Diz a artista:“Em um tempo de distração constante, tirar um tempo para nos conectar com nós mesmos e com os outros está cada vez mais difícil.”A fala de Abramovic faz coro com outras vozes que anunciam os paradoxosda vida atual. Pressa constante, efemeridade das relações, solidão, consumo desenfreado, tempo líquido e empobrecimento da experiência.
Pretendo buscar uma reflexão a partir do convite de Abramovic, procurando puxar alguns fios dos tempos e sentidos que se entrecruzam na fala da artista.
Elida Tessler(2003, p. 191)argumenta que tempo e espaço são elementos essenciais nas artes visuais. A ideia apresentada pelo artista reivindica um estatuto que almeja a constituição de algo novo. “O novo, de novo? Podemos dizer, então, que estamos sempre em busca de um outro começo, querendo participar do mito do eterno retorno”. Em Terra Comunal Marina Abramovic segue esse rumo. Apresenta o fundamento do método: “o que eu estou tentando fazer aqui é trazer-lhes de volta à simplicidade, uma oportunidade de ficar em silêncio e em sintonia com o momento presente”.
Estamos deixando passar o momento presente? Em 1987 Caio Fernando Abreu publicou uma crônica no Estado de São Paulo dedicada “ao momento presente”, que traz em seu bojo alguns traços do método Abramovic. Abaixo destaco um trecho:
Contemple o momento presente como um parente, um amigo antigo, tão familiar que não há risco algum nessa presença quieta, ali no canto do quarto. Como a uma laranja, redonda, dourada – mas sem fome, contemple o momento presente. (…) Desligue a música, agora. Seja qual for, desligue. Contemple o momento presente dentro do silêncio mais absoluto (p. 55).
Os interessados em participar do Método Abramovic devem dispor de tempo e disponibilidade para deixar celulares, relógios, computadores ou qualquer outro equipamento num armário na entrada. Fones de ouvido que bloqueiam o som devem ser usados. O estado de silêncio ganha amplitude. Despidos dos apetrechos da tecnologia contemporânea os participantes mudam o ritmo e prestam mais atenção aos movimentos básicos do corpo, como respirar, andar, sentar, olhar. Diz Abramovic:
E com isso você ganha tempo. E esse tempo é extremamente importante. E como você preenche esse tempo livre? Este é um tempo para reflexão que estou proporcionando aqui. Isso nunca funcionaria se eu tivesse feito 10 ou 15 anos atrás. E porque faz tanto sucesso agora? A ideia é que se experimente o método, que se alcance o estado de câmera lenta. As pessoas precisam, nós precisamos desesperadamente de algo que nos conecte conosco. Estamos completamente desconectados. Nós precisamos de alternativas. E artistas podem dar alguma consciência sobre essas alternativas.
Faz parte da pesquisa de Abramovic o estudo dos elementos da terra, do poder dos minérios, da espiritualidade, dos ritos xamânicos. O público entra em contato com cristais brasileiros, pedras elaboradas no pulsar da terra. Nesse momento é fundamental evocar o título da exposição: Terra comunal, solo em comum, um solo em que tudo se interliga. Joseph Campbell alerta: “Dizem que o que todos buscamos é um sentido para a vida. Não penso que seja assim. Penso que o que estamos procurando é uma experiência de estarmos vivos”.
Dos vários significados que os dicionários trazem para a palavra experiência opto por: conhecimento adquirido graças aos dados fornecidos pela própria vida. Nesse sentido, viver a intensidade de um momento. Experiência é uma permissão de estar entregue, inteiro, consciente de participar da trama de um tecido vivo.
Talvez o usufruto da experiência do método Abramovic promova uma sensibilização à compreensão e manejo do tempo. O psicanalista Márcio Tavares D’Amaral fala de uma ética da desaceleração: “Porque, no devagar, se instaura um tempo que faz sentido” (2010, p. 26). Tempo. Não é linear como diz o calendário. Ao mesmo tempo estão comigo o tempo cósmico, histórico, existencial: do universo, do surgimento da vida, do surgimento da vida humana, da história documentada, de minha própria existência. E eu dependo de todos esses tempos e ao mesmo tempo, todos acontecem e integram o agora, o momento presente. Por que não prestar atenção no tempo real que temos, que é, afinal de contas, o eterno agora?
Nesse sentido destaco as palavras de Andréa Bonfim Perdigão (2010):
É preciso ver que, num tempo de máquinas cada vez mais velozes, continuamos sendo seres lentos, que levam tempo para mastigar e engolir, para ir ao banheiro, para conversar com os filhos olhando em seus olhos, para perguntar como vão as pessoas e poder ouvir o que respondem. Talvez precisemos descobrir que, às vezes, é muito bom, senão fundamental, fazer uma única coisa de cada vez (p. 16).
Abramovic pede nosso tempo e em contrapartida mostra que é possível ampliá-lo no tempo da experiência. Já que estamos atravessados pelo virtual, pela pressa dos compromissos inadiáveis e impactados pela ansiedade de papéis sociais impostos, o encontro com a arte ajuda a mostrar que para viver bem a gente precisa equilibrar as forças e diminuir um pouco o ritmo. Reassumir as rédeas de nosso corpo.Estar em sintonia com nosso mundo interior e com os outros. Desta forma é possível perceber a beleza que reina na simplicidade: o florir de um jardim, o vento que balança as folhas de uma árvore, o voo de um pássaro, o olhar da pessoa amada.
E é justamente esse olhar poético para a vida que a pressa nos rouba. Com as palavras de Alberto Caeiro concluo o tempo deste texto: “Não tenho pressa. Pressa de que? / Não tem pressa o sol e a lua: estão certos. / Ter pressa é crer que a gente passa adiante das pernas /Ou que, dando um pulo, a gente salta por cima da sombra. / Não; não tenho pressa”.
Referências bibliográficas:
ABREU, Caio Fernando. Pequenas epifanias. Rio de Janeiro: Agir, 2006.
CAMPBELL, Joseph. O poder do mito.São Paulo: Palas Atena, 1990.
D’AMARAL, Márcio Tavares. História e Sentido. In PERDIGÃO, Andréa Bonfim. Sobre o tempo: um livro de entrevistas com vários autores. São José dos Campos, SP: Pulso, 2010.
PERDIGÃO, Andréa Bonfim. Sobre o tempo: um livro de entrevistas com vários autores. São José dos Campos, SP: Pulso, 2010.
TESSLER, Elida. O esquecimento doeu – ver e rever otempo.In: FONSECA, T.; KIRST, P. Cartografias e devires: a construção do presente. Porto Alegre: UFRGS, 2003. p. 191 a 206.
Hercilia
Uma leitura que trouxe reflexão e vontade de parar no tempo. Me conectei!