“A notícia se espalhou e todo mundo veio ver a maravilha.
Caixa grande de madeira, até pegava o estrangeiro.
As válvulas se acendiam, vinha o tempo de aquecimento
e, de repente, a voz que vinha de muito longe.”
[Rubem Alves, em O VELHO QUE ACORDOU MENINO.
São Paulo: Planeta, 2015; pág. 203].
O meu avô paterno foi juiz de paz. Casava, batizava e resolvia todo tipo de pendenga. Desfrutava de rara inteligência e de algumas posses. Sobressaíam nele o caráter íntegro, o senso de justiça e a paciência inabalável. Enfrentou, com dignidade e coragem – além de muito amor à terra –, muitas estiagens e secas. Nunca abandonou o seu rincão; nele fincou raízes. Tornou-se bastante conhecido naquele mundaréu de caatinga, no sertão da fartura e da fome e sede. Mereceu o respeito de muitos. Casou-se três vezes, enviuvou duas. Constituiu uma prole de trinta e dois filhos. Com a minha avó, dona Chiquinha – que nós chamávamos de Mãezinha –, a última de suas consortes, foram apenas seis. Imortalizou-se através deles. E de nós.
Não senti o prazer de conhecê-lo em vida. Nos tempos de criança, sempre invocávamos o seu auxílio em meio a castigos merecidos; e ele nunca deixou de socorrer-nos. Nós o chamávamos carinhosamente de vovô Dindin.
O meu pai, o mais novo dos homens, costumava dizer que alguns de seus irmãos tinham idade até para ser seu avô ou avó ou pai ou mãe. Lembro-me de um deles, de nome Arsênio, cuja química se revelou, de forma trágica, em uma de suas andanças pelas entrâncias e reentrâncias da serra de Baturité – nunca me revelaram com que objetivo –, quando, tragado pelas águas de uma cachoeira de médio porte, teve seu corpo arremessado contra uma enorme laje ao pé da cascata. Ali mesmo feneceu.
As recordações de hoje atendem pelo nome de Antônio. Tio Tonho. Católico fervoroso, cidadão respeitável, comerciante bem estabelecido, proprietário e locador de algumas boas casas… numa delas, eu nasci; noutra, bem mais espaçosa, engatinhei e dei os primeiros passos. Apadrinharam-me a sua cunhada – Rosinha, solteira por opção – e seu filho mais velho – Juarez. Ele sempre tratou o meu pai como se filho dele fosse.
Na manhã de um dia qualquer, familiares dos donos da casa se acomodaram como puderam na ampla sala de visitas, com três grandes janelas para a rua, onde a vizinhança disputava espaços. Num dos recantos do ambiente, sobre uma mesinha de madeira envernizada, estrategicamente posicionada e enfeitada com uma alvíssima toalha de renda, repousava o objeto da curiosidade de todos nós – eu tinha uns cinco anos, nada mais que isso. Tio Tonho mexeu em alguns botões, umas luzinhas minúsculas se acenderam, um chiado curto causou algum incômodo aos ouvidos dos mais próximos, e… oh!… todos se espantaram com o que ouviram. Uma voz bem marcante, vinda não se sabia de onde, preencheu os desvãos do espaço. Era o rádio do tio Tonho, um dos primeiros a chegar à minha terra natal. E, enquanto as pessoas se entretinham com a novidade ou se regozijavam com o dono daquela coisa fantástica, desvencilhei-me do abraço protetor de minha mãe, escorreguei meu frágil corpo por entre todos, mergulhei por baixo do tampo da mesinha e, decepcionado, não encontrei, na parte traseira do intrigante aparelho, nada que me revelasse a presença do homem que ainda falava.
Descoberto em posição desconfortável e frustrante, todos riram de mim e da minha ignorância inocente.
“Aquele sorriso vermelho de batom, olhar lânguido,
colar de pérolas, cabelo à la garçonne, seios opulentos,
espremidos pra cima, querendo saltar pelo decote da blusa,
mostrando o estreito vale de carne macia
que levava aos picos do de-leite…”
[Rubem Alves, em O VELHO QUE ACORDOU MENINO.
São Paulo: Planeta, 2015; pág. 66].
Permaneçamos na ampla sala de visitas da casa do tio Tonho. Há um outro fato, ali ambientado, que, àquela época, também protagonizei.
Quando nasci, minha mãe sofreu algum tipo de deficiência – não sei especificar qual –, cujo tratamento afetou a lactação, ou seja, a produção puerperal de leite materno, incapacitando-a de amamentar-me. Criaram-me, então, à base de mamadeiras.
Recentemente transferido do interior de Minas Gerais para a agência de Baturité, um jovem bancário e distinta consorte passaram a residir numa das casas de propriedade do tio Tonho. Bastante moça, ainda sem filhos e muito sociável, rapidamente a “prendas do lar” conquistou toda a vizinhança feminina, com quem gostava de compartilhar suas alegrias, suas graças, suas novidades.
Ela era dotada de beleza natural, com estatura mediana, corpo bem delineado, tez bronzeada, cabelos negros e lisos e esparramados até a cintura, olhos também negros de uma vivacidade penetrante, nariz um pouco afilado, lábios carnudos e sensuais, queixo de linhas agradáveis e voz aveludada. Carismática, messiânica, fascinante.
Quando a vi pela primeira vez, os inocentes olhinhos de cerca de quatro anos de existência recolheram aquela imagem deliciosa, como a única que poderia imortalizar-se na memória, ao lado da de minha mãe, obviamente. Acho até que me apaixonei.
Reunidas na ampla sala de visitas da casa de tio Tonho, uma meia dúzia de mulheres bem casadas, incluindo a anfitriã e a minha mãe, conversavam sobre amenidades, como dengos dos respectivos maridos, mimos domésticos, pratos caseiros e outras coisas do gênero.
A “prendas do lar”, até pela sua origem, concentrava as atenções.
Em mim, a paixão à primeira vista transmutou-se em tormenta, tão logo fixei o puro e ingênuo olhar no decote da blusa branca com que se vestia aquela que houvera escolhido para ser minha deusa. A opulência de dois mimosos seios parecia querer explodir, desvencilhar-se das garras de um comedido corpete, ganhar liberdade, entregar-se à veneração de olhares desejosos ou invejosos.
A minha carência gustativa expôs-me ao ridículo. Saltei do colo de minha mãe e tentei alçar o da minha diva, com o olhar fixo em seu busto, sem esconder o desejo pueril de… de superar minhas deficiências de lactente não-autêntico.
Apavorada com o inusitado da situação, socorreram-na as outras mulheres. E eu recebi de minha mãe o castigo de que me fiz merecedor, ante o constrangimento que houvera causado.
Não mais me permitiram qualquer contato com a minha diva, cuja imagem ainda não se descoloriu em minha memória sexagenária.