O que resta de Auschwitz, Giorgio Agamben e “o muçulmano” – Nota de Leitura – por Pedro Henrique

É no mínimo sintomático que o judeu, exposto à situação limite da degradação da condição humana nos campos de concentração/extermínio nazistas, encontre, para nomear a sua desgraça – desgraça universal, enquanto desgraça da própria noção de “humanidade” –, um termo proveniente de outra cultura, a saber, da cultura árabe islâmica: mulçumano. Como se, exposto à vergonha de olhar-se diante do espelho, precisasse chamar-se por um outro – “Eu é um outro” (Rimbaud): Judeu degradado é mulçumano.

Não se trata aqui de buscar uma coerência filológica ou hermenêutica que encontraria em tal termo a melhor das definições possíveis para essa zona de indeterminação entre o humano e o não-humano, que é a própria experiência do campo de concentração/extermínio, o que se faz do “homem” nela. Mas se trata de apontar o latente do sintoma, o problema político que subjaz ao termo. Afinal, se na última das guerras, a segunda guerra mundial – hoje o mundo é, antes, um cenário pós-apocalíptico, pós-catástrofe –, foi a questão judaica que suscitou um apelo à redenção, através do testemunho dos sobreviventes – afinal, justiça e verdade são dadas, na derrota pela força, apenas na memória, no não esquecimento – é a questão árabe que nos suscita o mesmo apelo, e tendo de carrasco, ironicamente, o que deveio aos campos de concentração/extermínio, o Estado de Israel. Judeu degradado é mulçumano não para de soar como um juízo sintomático.

Se num primeiro momento Agamben retira pela porta da frente a teologia presente no termo holocausto como uma piada de mau gosto para definir a experiência dos campos de concentração/extermínio, pois não se trata ali de nenhuma espécie de sacríficio, de nenhuma provação da fé pelo martírio, é a teologia que retorna pela janela ao não problematizar também o termo mulçumano como o nome para o “homem” do campo no auge de sua degradação. Mulçumano é, na significação islâmica, aquele que se verga à vontade de Alá e se alheia de si mesmo. Mas se, como diria Feuerbach, toda teologia é antes uma antropologia, se quanto mais o “homem” põe em Deus menos ele retém em si mesmo, fica até difícil querer traduzir tal condição apenas pelo termo “mulçumano”.

Mas não se trata apenas de recalque da questão árabe-islâmica. Agamben acerta a definição da condição humana na experiência do campo, mas recalca, não tematiza também o principal da experiência dos campos: o trabalho. “Arbeit macht frei”, o trabalho liberta, era a inscrição na entrada de Auschwitz. Se, como diria Benjamin no prefácio de seu livro sobre o drama barroco, a verdade não se encontra no meio, mas nos extremos, o campo como situação limite traz consigo a própria verdade da organização social capitalista do trabalho, o sacrifício. Já não se trata de sacrifício nos termos da teologia, não se trata de martírio como testemunho da fé, tal sacrifício está a alguns degraus mais abaixo, se trata de um sacrifício cru, nu, presente na própria estruturação da sociedade capitalista, o vazio e repetitivo dispêndio de “cérebro, músculo, nervos, mãos etc.” (Marx) para a valorização do dinheiro como capital. “Arbeit macht frei” é o mantra desse sacrifício.

Pedro Henrique

"Anota aí: eu sou ninguém"

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