O Pestinha, por Luciano Moreira

Ele devia ter uns dezesseis ou dezessete anos. Embora aparentasse bem mais. Magricela, espichado, pele esbranquiçada, cabelos e olhos pretos, rosto ovalado, sorriso comedido e um jeito malandro de ser.

O pai, peixeiro, parece que só sabia fazer duas coisas na vida; ou melhor, três: vender peixes frescos na feira, reproduzir-se – contava já com uma prole de doze filhos, a mulher com um bucho já bem delineado, à espera do décimo terceiro rebento – e tomar umas cachacinhas com limão ao cair do sol. Não incomodava a ninguém, é bom que se diga.

Petinha (devia ser Pestinha!), como era por todos chamado, nascera craque para outras competências mundanas; nada apreciáveis, é forçoso dizer. Nos estudos, uma lástima, um caso perdido; escola nenhuma se julgava habilitada a transformá-lo num cidadão… e tantas já até tinham tentado, vasto era o seu currículo escolar, em face de registros nada abonadores. Para o futebol, mostrava desempenho mediano, ou seja, não chamava a atenção de quem quer que fosse.

Não perdia os nossos rachas de sábado, à tardinha/noite. Juntava-se a três irmãos de idades próximas entre eles e alguns outros adolescentes que formavam a turma deles e, naturalmente, se divertia como qualquer outro moleque. Comportamento sempre exemplar. E nós o tratávamos sem qualquer discriminação. Até alimentávamos uma esperança, por mais frágil que fosse, de convertê-lo à salutar submissão aos regramentos básicos da vida.

Findo o racha, fazíamos a nossa resenha. Ainda com a indumentária de peladeiros, sentados na grama, sob a iluminação de refletores instalados em postes à margem do campinho de areia, sorvíamos uma cervejinha gelada com tira-gosto de costela de porco assada na brasa – especialidade do caseiro do sítio – e, alegremente, conversávamos sobre tudo. A contação de piadas e “causos” era o filé do cardápio. Ríamos, muito!

A campanha política, em pleno processo de escolha de prefeito, vice e vereadores, entrava na reta final e adquiria contornos preocupantes. Os candidatos disputavam votos com as armas de que dispunham. Os seus correligionários se envolviam nas refregas com exagerado denodo, além de bravura e coragem exacerbadas. E os fogos pipocavam tanto nos concorridos comícios quanto nas barulhentas carreatas. E os carros de som empesteavam o ar com “jingles” que azucrinavam, que torravam a paciência de todos nós.

Petinha (devia ser Pestinha!), que também viera de bicicleta, levantou-se de repente e se fez ouvir:

Amigos, eu tenho de partir. É uma pena, mas ainda vou ao comício de Fulano (o candidato a prefeito de sua preferência).

E Petinha, onde vai ser? – Alguém perguntou, demonstrando um certo interesse.

Hoje, vai ser na Jandaiguaba. O de ontem, lá na Tucunduba, foi show. Uns caras, metidos a valentes, quiseram sacanear com a gente, antes do homem [o candidato, creio eu] chegar. Puxei minha peixeira de cabo verde, mais afiada que língua de sogra, e fiz uma pequena demonstração do que seria capaz de aprontar com ela… como foi gostoso ver um bocado de frouxos correndo com medo de morrer! Mais tarde, começou outro rebuliço. Queriam botar a gente na roda de bobo. Saquei meu língua de fogo, um trinta-e-oito de responsa, bem calçado com munição de qualidade, ameacei atirar apontando o berro pra todos os lados. E novo corre-corre. Povo medroso, meu Deus!

Eu não me contive:

Amigo, você tem ideia de quantos anos já vivi?

Não, não sei. E por que o senhor me pergunta isso?

Eu já estou com quarenta e alguns anos de vida. Acho que você deve ter chegado a um terço disso.

E daí? – Deu de ombros e caçoou: – Não estou entendendo é nada…

Muito simples, garoto. Você acha que, com essa valentia toda, vai conseguir chegar aonde agora estou?

Isso não me preocupa, professor. Mesmo porque viver é estar sempre bem perto da morte. – Ele filosofou, encaminhou-se para a sua bicicleta e se foi.

Calei-me. E todos fizeram cerca de um minuto de silêncio. Quando a normalidade retornou, retomamos a temática de sempre.

[…]

Na manhã do sábado seguinte, faço, como de costume, a minha feira semanal. Na calçada do supermercado, esperando que o trânsito me permita atravessar a avenida que me separa do frigorífico de minha preferência, ouço uma voz bem familiar. Era um amigo, de idade equivalente à minha, e também parceiro dos rachas dos sábados. Dou-lhe a atenção merecida e o ouço perguntar:

O senhor já sabe o que aconteceu com o Petinha?

Não! – Respondo sem, certamente, esconder o espanto.

Hoje, no começo da madrugada, ele foi atraído pr’uma emboscada, na ponte férrea, próxima ao Picuí. Parece que ofereceram algumas vantagens lá nos negócios deles. E foi morto a facadas. Dezesseis. Acerto de contas do tráfico de drogas. O enterro vai ser logo mais, à tarde.

E onde está sendo velado o corpo?

Pelo que eu sei, ainda não foi liberado pelo IML.

É… ainda é muito cedo… o tempo…

Mas a família deseja enterrá-lo logo. Com medo de alguma represália. Contam que, ao lado do corpo ensanguentado, encontraram um bilhete, que teria sido escrito por uma ex-namorada dele, com os seguintes dizeres: “Querido, isto é o seu presente de aniversário. Uma perfuração para cada ano de sua desgraçada vida”.

Amigo, mas que morte trágica!

A gente lembrou o que o senhor disse a ele sábado passado…

Eu lhe garanto que nada tenho a ver com isso! Não foi sequer uma premonição…

Fique tranquilo, professor! Nós conhecemos muito bem o senhor…

Naquele sábado, não houve racha, muito menos resenha.

Quanto aos políticos… quem era mesmo Petinha?! Agora, apenas um pestinha a menos.

Post Scriptum: Petinha. [Ornitologia] Pássaro europeu (Anthus pratensis), também chamado petinha-dos-prados e sombria. Ave insetívora.

Francisco Luciano Gonçalves Moreira (Xykolu)

Graduado em Letras, ex-professor, servidor público federal aposentado.

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Francisco Luciano Gonçalves Moreira (Xykolu)

Graduado em Letras, ex-professor, servidor público federal aposentado.

1 comentário

  1. Janete Barros

    Já é certo, que, de valente, o inferno anda cheio… desde menina que ouço repetidas vezes. E o “Petinha”, pestinha, tinha lá suas razões… “viver é estar sempre bem perto da morte.” É traço certo, pois quem nasce, logo, um dia também vai. Guimarães Rosa que o diga, na filosofia bíblica do sertão.